quinta-feira, 7 de abril de 2022

SOBRE OS RELATIVIZADORES DA BARBÁRIE

 

(Um artigo esclarecedor e corajoso de Rui Lage, hoje no Público, leva-me também a fixar neste blogue um testemunho de separação de águas, através do qual fique definitivamente claro que ter pensamento crítico a partir do Ocidente e sobre a sua pretensa superioridade moral e política não significa relativizar e condescender, mais ou menos amavelmente, com a barbárie imperial de Putin. Porque acima de tudo, reconhecer-me como habitando o mundo do pensamento crítico, não implica perder a noção das proporções. Há uma agressão, uma barbárie e uma insuportável revisão da história que têm de ser condenadas e que transformam radicalmente toda a ideia de neutralidade. Outra coisa, bem diferente, é manter o pensamento crítico sobre o modo como pretendemos estender e demonstrar os valores do ocidente, num mundo hoje limitado ao capitalismo e às suas variedades. Até porque há uma diferença essencial: por cá os Boaventuras, Loffs e Purezas deste mundo, uns mais safados, outros mais ingénuos, podem continuar a fazer conviver as suas atrocidades ideológicas como o nosso pensamento crítico mais decente; a situação recíproca do lado de lá conduzir-nos-ia à prisão, aos gulags, ao envenenamento e a outras formas de fazer desaparecer o pensamento inconveniente. Não é uma minudência.)

Rui Lage no artigo atrás mencionado (link aqui) chama-lhes predicadores. Curioso. O seu foco de invetiva está em Boaventura Sousa Santos e em Manuel Loff, mas certamente que poderíamos acrescentar ao rol de relativizadores toda uma outra série de personalidades. Gente que modelou a sua experiência política cívica, política e científica segundo um ódio e rejeição expressos ao modo como o Ocidente procurou afirmar pelo mundo a sua pretensa superioridade moral e política. Ser antiocidental a partir do Ocidente é coisa que a democracia permite nos moldes diferentes que as constituições e as práticas democráticas o asseguram. Mas quando o mundo que poderia servir de contraponto e alternativa se desmorona, seja por vias revolucionárias que se auto-aniquilaram, seja por derivas imperiais de poder absoluto e cleptocrático como é manifestamente o caso de Putin, esta gente deve mergulhar numa fossa profunda. Alguns terão inclinação para a depressão e talvez morram com ela. Outros, resistem, relativizando o horror e a barbárie, argumentando que o Ocidente também teve os seus horrores, desmandos e erros históricos graves, como por exemplo a treta das armas de destruição em massa no Iraque, ou mais atrás, a inviabilização violenta do socialismo de Allende ou ainda mais atrás o golpe ocidental (essencialmente americano) do golpe no Irão que abriu caminho aos 25 anos de repressão do Xá e depois ao recrudescimento do islamismo xiita dos Ayatolas.

É esta gente que não consegue condenar a barbárie da invasão russa sem a relativizar e suavizar com toda a série de erros e até atrocidades cometidas no quadro da afirmação do egocentrismo ocidental. A isto chamo eu perder a proporção das coisas, que é uma forma particular de alienação, não distinguir o mais importante.

Porque estas almas pensam que ter um pensamento crítico sobre a afirmação do Ocidente no mundo, sobretudo apoiado no rigor da história, significa necessariamente relativizar e desculpabilizar o horror e a barbárie que, escudados na suposta ruína moral do Ocidente, fazem singrar poderes imperiais e totalmente amorais. E até poderemos contar com eventuais excessos ucranianos na rejeição de quem os agride em sua própria casa. Mas não, definitivamente não. Há gente que tem esse pensamento crítico, que não se orgulha das derivas a ocidente, mas que mantém o sentido da desproporção das coisas. E que sabe distinguir entre o que em determinado momento é importante e exige resposta e o que resulta do entendimento necessário da história e dos seus contextos. E, como escrevia no princípio deste post, sobretudo porque esse ocidente democrático em pretensa ruína moral, tem a abertura democrática suficiente estabelecida para permitir que esses “predicadores” estudem, investiguem, trabalhem e possam ter imprensa e outros espaços livres para afirmar as suas posições esdrúxulas e com perda das proporções. Mas como dizia o saudoso Eduardo Prado Coelho há limites para tudo: até podemos conceder bolsas de doutoramento e outras para os não ocidentais aprofundarem por cá os seus conhecimentos, mas não para conduzir à nossa própria destruição. Até porque, os nossos homónimos do pensamento crítico quando o ousassem fazer no interior desses autoritarismos seriam passados a ferro sem a menor das preocupações.

É uma grande diferença. Os “predicadores” fazem de conta que ela não existe.

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