quarta-feira, 27 de abril de 2022

UM BELO TESTEMUNHO

(Este blogue não foi inicialmente concebido para ser animado apenas por estas duas boas almas que há algum tempo protagonizam e animam este espaço de reflexão. Foi pensado admitindo, não sabemos se ingenuamente, mas isso também não vem ao caso, para integrar outros escribas, nem que fosse pontualmente. No registo do pontual, ainda conseguimos reunir alguns contributos de gente que estaria seguramente feliz neste espaço, como, por exemplo, a Paula Guerra, o Luís Carvalho, a Ana Barroco e creio que o José Portugal. Por uma razão ou outra, essa possibilidade gorou-se. Por isso, trago por vezes algum texto de gente próxima, que tem os seus próprios espaços de comunicação e reflexão. É o caso do Professor Leonardo Costa, cuja capacidade reflexiva de integração da política e do território não abunda por aí e que tenho orgulho em ter no meu círculo mais restrito de amigos.)

Assim, fiel aquele princípio anteriormente referido, aqui estou, obviamente com a sua permissão, a reproduzir aqui um excelente texto publicado no FORUM DEMOS (link aqui).

O texto chama-se “Acerca dos amanhãs cantantes do neoliberalismo” e tem o fascínio adicional de começar com uma pintura de Vieira da Silva e um poema de Sofia de Mello Breyner Andresen. Estamos por isso em excelente companhia.

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘O Nome das Coisas’ – 1977

 

“Em Portugal, cada vez que se comemora o 25 de Abril de 1974, há quem queira também comemorar, por boas razões (dá-se o benefício da dúvida), o 25 de novembro de 1975. A comemorar o 25 de Novembro de 1975, um contragolpe, considero que dever-se-iam também comemorar o 28 de Setembro de 1974 e o 11 de Março de 1975, outros dois contragolpes. É que foram estes três contragolpes que, no seu conjunto, permitiram a consolidação da democracia portuguesa. Clubes à parte, é capaz de ser mais simples ficarmos pelas comemorações do 25 de abril de 1974, o dia inicial em que a poesia esteve na rua.

Vem o acima a propósito dos amanhãs cantantes do neoliberalismo. Em democracia, os indivíduos são livres de escolherem os amanhãs cantantes que entenderem. Os amanhãs cantantes do comunismo prometiam um sol a brilhar para todos nós. Sol Enganador, as mais das vezes, à luz da experiência histórica. Já os amanhãs cantantes do neoliberalismo (que não é novo nem é liberal) prometem, no presente, uma vida às novas gerações pior do que aquela que as gerações mais velhas tiveram ou têm tido. Ou seja, no presente, o neoliberalismo nem se quer faz o esforço de ser uma utopia. É uma distopia!…

Como afirmava a primeira ministra do Reino Unido nos anos 1980s do século XX, Margaret Thatcher (uma das grandes referências políticas do neoliberalismo), [para o neoliberalismo] não existe sociedade, apenas indivíduos. Indivíduos deixados à sua sorte, acrescento. Indivíduos que não pautam a sua atuação pelo princípio moral da simpatia de Adam Smith. Muito pelo contrário, pautam a sua atuação pelo princípio imoral da ganância, dedicando uma boa parte do seu tempo a extrair rendas à sociedade e a colocar as mesmas em paraísos fiscais.

Desde os anos 1980s do século XX, o neoliberalismo mais do que cumpriu com as suas promessas. Abandonou cada um à sua sorte, promoveu o individualismo metodológico e o princípio imoral da ganância, desregulou os mercados, em particular, os mercados financeiros, e trouxe dinâmicas de crescimento à desigualdade que colocam os países do mundo, também os países da OCDE, a caminho do antigo regime e/ou de sociedades do tipo patrimonial, não meritocráticas. Pelo caminho, gerou a crise financeira global de 2008 e, a seguir, suportou o salvamento incondicional do sistema financeiro desregulado a que deu origem, à conta do erário público. Um sistema financeiro que se posiciona algures entre o casino e o mundo do crime.

A sociedade em que vivemos, construída nos últimos quarenta anos, é um fruto das ideias neoliberais. E se a mesma está mais vulnerável a extremismos, como os da extrema-direita nacionalista e xenófoba, às ideias neoliberais o deve. Por outros palavras, foi o neoliberalismo que alimentou a ascensão da extrema-direita nacionalista e xenófoba em todo o mundo, ao preferir, nas suas palavras, o mercado imperfeito ao regulador perfeito, ao promover a ganância como uma coisa boa, ao fomentar a crescente desigualdade, ao colocar os indivíduos contra o Estado democrático, ao descredibilizar as instituições democráticas e do Estado, ao emprestar recursos financeiros a estas forças políticas extremistas, nacionalistas e xenófobas, por via dos paraísos fiscais que patrocinou. Foram as ideias neoliberais que colocaram as sociedades democráticas à beira do abismo. Insistir nas mesmas, é dar um passo em frente. É a receita para o desastre civilizacional.

É assim necessário meter o neoliberalismo na gaveta, em nome da preservação de uma sociedade democrática e/ou civilizada. É preciso voltar a colocar as pessoas comuns no centro dos debates e dos projetos políticos. É urgente recuperar e repensar as nossas sociedades, com novas e renovadas ideias políticas (algumas da social democracia, outras da própria doutrina social da Igreja). É fundamental falar com as pessoas comuns e tornar as mesmas agentes políticos ativos do seu destino, individual e coletivo, em vez de meros espectadores das suas vidas, mais ou menos vulneráveis aos caprichos e manipulações de certas elites (políticas e económicas) sem escrúpulos. Territorialmente, é preciso reorganizar o Estado (europeu, nacional, regional e municipal) de maneira a exercer o princípio da subsidariedade até ao limite das possibilidades que o mesmo oferece. Por outras palavras, é necessário aprofundar a democracia, representativa e participativa”.

Leonardo Costa

Docente e investigador da Universidade Católica Portuguesa

Porto 26 de Abril de 2022.

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