segunda-feira, 18 de abril de 2022

IDENTIDADE, TURISMO E GENTRIFICAÇÃO

 



(O Frederico Moura e Sá e o José Carlos Mota da Universidade de Aveiro meteram-me nestes sarilhos e lá estarei amanhã na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto nas Conversas Urbanas que o Público e a Associação Portuguesa de Urbanistas estão a organizar, com transmissão online e registo de podcast para mais tarde recordar. O tema é denso e carregado de matizes, seja ao nível da Cidade em abstrato, ou projetado para o Porto: Turismo e Identidade? Tradição e gentrificação. Darei hoje conta de como penso abordá-lo, em companhia do Professor Rio Fernandes e da poetisa e dramaturga Regina Guimarães e da moderadora a jornalista Ana Isabel Pereira.

Mais uma incursão descontinuada, para não dizer esporádica, sobre o tema da Cidade e por isso vou simplificar a equação bastante complexa que se encontra oculta no tema da Conversa Urbana de amanhã. Na equação proposta vou deixar cair a ideia de tradição, desculpando-me com o refrão já conhecido “a tradição já não é o que era” para me concentrar na relação “identidade, turismo, gentrificação”. E, mesmo assim, ouso simplificar ainda mais, propondo abordagens parcelares “identidade-turismo”, “turismo-gentrificação”, “identidade-gentrificação”, para depois em jeito de reflexão final tentar uma reflexão integrada de toda a equação.

Tal como o senti noutras incursões passadas sobre o tema, quando penso nos conceitos básicos que restam nesta equação simplificada do tema proposto, identidade e gentrificação, imagino o gozo ou o espanto (versão mais benigna) que homens da ciência básica devem experimentar quando assistem às nossas discussões sobre estes temas. Conceitos caóticos, de contornos variáveis e contexto-dependentes, é com isto que frequentemente trabalhamos para abordar a complexidade dos nossos temas. Revisito frequentemente algumas palestras no You Tube do físico Richard Feynman para recordar as limitações do que continuamos a chamar de ciências sociais. Não como instrumento de autoflagelação, mas apenas como recordatória das nossas limitações.

Comecemos pela identidade. Fiel aos meus princípios de estudioso do desenvolvimento, não acredito em identidades determinadas ou inalteráveis. A identidade de uma Cidade ou de um território é sempre, em meu entender uma construção social dinâmica, modelada, reconstruída ou, dirão alguns, manipulada, em função dos encontros com os outros, os de fora e dos de dentro. Neste contexto, habituei-me a considerar que o “bom” desenvolvimento, com traços identitários bem marcados, é uma construção modelada pela capacidade do endógeno trabalhar e gerir as influências exógenas. Mas poderíamos discutir se outras situações em que o exógeno comanda pode conduzir a alguma coisa de positivo. Se a identidade é já algo de complexo no plano pessoal e social, é-o ainda mais na perspetiva do lugar. A cultura é seguramente um dos blocos centrais da identidade territorial, mas aplicando ao caso do Porto para nos projetarmos num exemplo concreto a sua identidade é o resultado de uma combinação dinâmica de fatores diversos em que intervêm:

·        A partilha de uma história comum, ela própria entendida como uma construção;

  • Valores políticos, como os da independência, a oposição constante ao centralismo, da velha burguesia liberal, da dinâmica cultural sempre menos subserviente e dependente da ação estatal, a busca contínua de uma internacionalização própria;
  • Valores sociológicos e culturais como os da diversidade interclassista, das atmosferas próprias da convivialidade fortemente inclusiva e não elitista, os seus estilos de vida e linguagem próprios, a dinâmica do seu associativismo local;
  • A base económica e a sua transformação, em que avulta a sua relação com a economia de uma vasta região do Douro ao noroeste industrializado e aberto ao exterior, dimensão que se encontra numa transição fortemente acelerada;
  • Intervenção pública e política como alavanca de identidade, a propósito da qual poderíamos falar da candidatura do Centro Histórico a património mundial UNESCO, da política dos grandes equipamentos (Serralves, Casa da Música, Biblioteca Almeida Garrett, Rivoli, Galeria da Biodiversidade e política cultural para a internacionalização), Capital Europeia da Cultura (esta mais mitigada nos seus efeitos) e grandes investimentos na área da ciência e da tecnologia.

Se encaramos o turismo como uma das forças exógenas que irá imbricar-se nesta combinação dinâmica de fatores, então teremos aqui um caminho analítico para avaliar os efeitos da interação identidade-turismo. Diria que nesta relação há uma indeterminação à partida. O turismo pode ajudar a robustecer e afirmar a singularidade de alguns dos traços identitários diferenciadores da Cidade. Isso acontece quando sem concessões danosas o próprio produto turístico incorpora esses traços de singularidade. Parece-me que essa versão do problema está a acontecer quando certos públicos são sensíveis às atmosferas da convivialidade inclusiva da Cidade ou quando os seus grandes equipamentos culturais atraem um número tão significativo de visitantes próximos ou mesmo superiores aos concentrados na capital.

Mas a procura turística pode ser danosa e gerar processos de “comoditização”, padronização vulgarizadora, perda de autenticidade ou situações de cidade-refém dessas tendências. Ou em modelos mais confusos, sobretudo no plano das intervenções físicas suscitadas pela procura turística, podem conviver o pastiche e a autenticidade, tornando menos legíveis os traços identitários e a diferenciação. Esta dimensão pode transformar-se em quadros de “sobreturismo” ou “turistificação”, provocando tensões entre a qualidade de vida dos residentes e dos visitantes, mas isso acontece numa Cidade em que é histórica a relação nem sempre consistente entre os “city-users” e os residentes.

Mas novas dificuldades emergem para se avaliar como travar e inverter processos. A partir de que momento e de que indicadores é que a sobreutilização é reconhecível por residentes e visitantes? A situação é complexa porque custos e benefícios dessa sobreutilização estão desigualmente distribuídos. A sua avaliação implica escolhas e gestão de diferentes interesses e uma monitorização constante. E a tal identidade cultural como é afetada pela sobreutilização? E para complicar a questão estamos em tempos em que a “turismofobia” pode ser uma fórmula encoberta da rejeição do outro e nem sempre o multiculturalismo desagua em águas de tolerância e igualdade. O grau de tolerância da população é algo de essencial em todo este processo e não podemos ignorar o contrafactual de outras forças que nada têm que ver com o facto de haver ou não turistificação, a questão do declínio demográfico, da recomposição do emprego e da base produtiva e da própria recomposição social da Cidade, que remete para a terceira variável da nossa equação, a gentrificação, esse outro conceito caótico com que temos de nos amanhar.

Para fechar esta interação, diremos que o turismo entra assim na questão da identidade de um território não apenas como resultado das interações sociais que nele se desenvolvem ao longo do tempo, mas também no plano das suas relações com o exterior (em que o turismo é uma variável como por exemplo a inserção da Cidade na hierarquia da economia global). E como em qualquer outro processo de desenvolvimento os resultados não são os mesmos quando é o endógeno a dominar e gerir as influências externas ou quando é submerso pela força e intensidade dessa influência.

As outras duas interações ficam para o post seguinte.

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