(Estamos numa semana em que a paixão desportiva estará ao rubro e provavelmente de novo a nossa hiperavaliação do que corre bem e do que corre mal será exercitada nos extremos. O futebol está aí para ser estudado, pois é pródigo nessa incapacidade de nos situarmos com realismo e em função das nossas forças. Mas, desta vez, não pode ignorar-se que dificilmente uma seleção terá reunido tantos talentos individuais, cruzando gerações, constituindo por isso um desafio gigante à nossa capacidade de organização e de cooperação entre talentos. Invocando um tema que me é caro, estando a equipa portuguesa carregada de talentos e competências individuais, será que vamos ser capazes de colocar em campo a nossa competência coletiva? Certamente que até ao fim do Euro haja matéria para regressar a esta questão da seleção, que simboliza bem, a meu ver, os nossos problemas de organização. Opto por isso, neste post, por um outro registo, mais calmo e reflexivo, gizado em torno de uma afirmação de Roger Federer sobre o ocaso dos Grandes. É um tema que sempre me fascinou e ele na seleção, também mais tarde ou mais cedo, irá colocar-se, pois como costumo dizer a biologia não perdoa, por muito talento que o nosso Ronaldo tenha em dilatar essa revelação. A entrevista de Roger Federer ao El País, ditada pela estreia a 20 de junho no Prime Video do documentário sobre os últimos 12 dias da sua fabulosa carreira, é um monumento de reflexão, mostrando-nos que aquele talento de inteligência e destreza física no court era indissociável de um ser reflexivo que utilizava o ténis para pensar. Daí recomendar vivamente a sua leitura.)
Há textos que nos marcam para sempre, a que sempre regressamos, lendo-os vezes sem conta e cada vez que isso acontece novos tópicos de leitura emergem. Esse é decisivamente o caso do escrito (ensaio) de David Foster Wallace de 2006, “Roger Federer as a religious experience”, que o incontornável escritor americano publicou no New York Times, analisando com a finura do seu estilo o desempenho de Federer no court. Costumo dizer que nunca como neste ensaio a escrita serviu dois mundos tão diferentes – a literatura e o ténis. E, por isso, quem quer praticar o ténis com uma compreensão mais larga do seu mundo terá em meu entender de mergulhar neste texto. Não é que ele me ajude muito a compensar as lacunas técnico-táticas que me levam a perder muitos pontos na competição, mas ajudou-me a compreender porque é que as atuações de Federer me petrificavam, preso ao ecrã. Claro que para quem tiver unhas, estilo e coragem valeria a pena escrever novos ensaios sobre o confronto de personalidades tenísticas como Djokovic, Nadal, Connors, Agassi, Sampras, Borg e tantos outros, alguns dos quais ainda de boa saúde nos comentários da Eurosport em Roland Garros ou em Wimbledon.
Por agora, recordei o ensaio de Foster Wallace porque a reflexão de Federer sobre o seu ocaso é um monumento de perspicácia e sensibilidade, que poderíamos estender a outros ocasos, no ténis, no futebol, no espetáculo e na vida em geral.
Talvez seja a minha costela masoquista a dizer estou aqui, mas o ocaso sempre me fascinou, não os ocasos patéticos e trágicos, penosos e paredes meias com a demência. O fascínio incide sobre aqueles que conseguem positivamente e de boa alma elaborar sobre o seu próprio ocaso, compreendendo a biologia, agradecendo-lhe a deferência de nos ter poupado à tragédia.
A lesão de Djokovic no joelho vai colocá-lo obviamente perante a escolha que Federer analisa com clareza na sua entrevista: veremos se a sua alma sérvia nos vai trazer outro tipo de reflexões.
Mas a afirmação de Federer honra a meu ver o ensaio de Foster Wallace – retirar-se é uma espécie de funeral, e a parte que gosto mais, um desenfoque em câmara lenta. E talvez esteja na ideia de câmara lenta o segredo disto tudo.
O cinema faz parte do ocaso inteligente. É uma boa conclusão.
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