(O ano de 1936 acolheu acontecimentos políticos de grande relevância nas então efervescentes França e Espanha. Em ambos os países, realizaram-se eleições marcantes em que se confrontaram amplas frentes eleitorais de esquerda e direita com vitórias para as primeiras. Em França, sob a liderança inspiradora do socialista e judeu Léon Blum, após a vitória eleitoral constituiu-se governo que ficou conhecido por Frente Popular e que integrava socialistas e radicais, com apoio parlamentar do Partido Comunista Francês que decidou não integrar o governo. Em Espanha, apenas os Republicanos integraram o governo da frente vencedora, suscitando análises específicas que não serão invocadas neste post. No que respeita a França, pese embora o número reduzido de anos que o governo da Frente Popular aguentou, aquela experiência sempre teve uma grande sedução nas hostes da esquerda, mesmo fora de França, e quase diria que nas cabeças dos entusiastas da geringonça à portuguesa a recordação mítica da Frente Popular de Léon Blum esteve presente. Sem querer fazer história fácil e barata, a recordação da Frente Popular veio-me à memória para contextualizar a verdadeira implosão política que a decisão de Macron de dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas ainda para este mês de junho desencadeou. A história comparativa não tem significado senão se for acompanhada de uma rigorosa contextualização e é com base nessa contextualização que pode compreender-se a minha ideia de estarmos muito provavelmente perante uma Frente Popular mal-amanhada, sobretudo por ser quase exclusivamente reativa e de sobrevivência, sem aparentemente um programa político verdadeiramente mobilizador.)
Em post anterior, sublinhei a ideia expressa por um jornalista do Libération que me pareceu merecedora de grande atenção. Poderá dizer-se que a decisão de Macron foi temerária, principalmente porque com toda a probabilidade iria gerar uma polarização ainda mais extremada do que a que grassa na sociedade francesa. À medida que o partido do próprio Macron foi perdendo força eleitoral, era possível antecipar que um grande apelo à barragem da extrema-direita iria colocar de fora a força política do próprio Macron. E assim parece estar a acontecer. A esquerda francesa aparentemente adormecida e algo revitalizada com os resultados obtidos pelo Partido Socialista Francês, obviamente longe de resultados do passado, mas, pelo menos, afastando a ideia de extinção e de irrelevância, reuniu esforços e sob a coordenação de Raphaël Gluckssman (PSF), deputado no Parlamento Europeu, filho do conhecido filósofo francês André Gluckssman, apoiado entusiasticamente por Lionel Jospin e chefe de fila dos socialistas às eleições europeias da semana passada, está na base de um contrato de legislatura em torno de um texto de 20 páginas que integra não todo o PSF, a França Insubmissa de Mélenchon, os Verdes e outras forças radicais. À data em que escrevo, alguns deputados socialistas importantes como Bernard Cazeneuve opunham-se à aliança com Mélenchon e com a sua NUPES (a Nova União Popular Ecológica e Social (em francês: Nouvelle Union Populaire écologiste et sociale) que tinha concorrido às eleições de 2022.O ainda resistente François Hollande deu o mote aceitando a nova Frente Popular ou o que venha a ser e candidatando-se pela circunscrição de Tulle, mas a verdade é que o PSF está longe ainda de estar unido na resposta ao desafio colocado por Macron.
Fiel ao seu registo de Estado que tem vindo subtilmente a passar, Marine Le Pen anunciou desde já que, em caso de vitória do Rassemblement National, não insistirá na demissão presidencial de Macron, o que é a mesma coisa que dizer que aceitará uma coabitação, em termos práticos fervendo Macron em lume brando e preparando obviamente a sua própria candidatura à Presidência.
Só a dinâmica concreta de uma possível vitória da esquerda nas eleições de junho permitirá analisar se esta Nova Frente Popular poderá ou não assumir a relevância da que foi concretizada em 1936. O que sabemos é que para a sua liderança não haverá personagens políticas com a força de um Léon Blum. A ainda juventude de Raphaël Gluckssman vem trazer à recuperação dos socialistas uma nova energia, mas a coabitação interna na Nova Frente Popular de Mélenchon e de outros radicais, com os Verdes e com um PSF esperançado em melhores dias vai ser uma enorme incógnita que só a ameaça da chegada da extrema-direita ao poder poderá mitigar.
Mas ironia das ironias, o apelo que muitos consideram temerário de Macron, além de muito provavelmente ir dinamitar a sua já alquebrada força política própria, poderá ter sido o motivo determinante para que as múltiplas desavenças à esquerda tenham sido esquecidas e a lembrança de 1936 ter sido invocada com a Nova Frente Popular. Nessa data, a Esquerda ganhou e conseguiu 376 lugares no Parlamento, contra 222 da frente de direita. Apesar da dinâmica de esperança agora criada estaremos seguramente longe desse resultado.
Dada a importância do tema, é bem provável que nos próximos dias continuemos com a França política objeto da nossa curiosidade reflexiva.
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