quinta-feira, 2 de maio de 2024

1º DE MAIO COM SINDICATOS EM PERDA

(De acordo com a série disponível nas estatísticas da OCDE, o ano de 1977 é o primeiro posterior ao 1º de Maio de 1974 com informação sobre a taxa de sindicalização da população empregada em Portugal, medida pela percentagem de indivíduos empregados inscrita num sindicato. Esse valor era de 63%, um valor extremamente elevado, sobretudo quando comparado com o valor médio na OCDE de então que era de 37,9% e ainda mais com a baixíssima percentagem de 18,1 para a Espanha. Para encontrarmos em 1977 valores superiores da taxa de sindicalização ao de Portugal teríamos de rumar a norte aos países escandinavos, onde encontraríamos valores de 76,1% para a Suécia, 72,1% para a Dinamarca e 66,7% para a Finlândia. Estes valores estavam seguramente em linha direta com o fabuloso 1º de Maio de 1974, do qual como já referi aqui neste blogue só pude ouvir o ruído impressionante da Cidade de Lisboa, escutado a partir do quartel do Lumiar onde me encontrava. Reconstituindo a série disponibilizada pela OCDE a partir de 1974 até aos anos com informação disponível, série essa que para Portugal apresenta inexplicavelmente ausências de informação para alguns anos e que por isso me levou a isolar apenas aqueles com informação disponível, compreende-se que a partir daí em Portugal e na OCDE se observou uma queda persistente dessa taxa de sindicalização. Na OCDE, o último valor disponível é de 15,8% para 2019 e em Portugal de 15,3% para 2016. Em fevereiro de 2023, a CNN anunciava que a taxa de sindicalização descera em Portugal para 7,6%. Por curiosidade, na Suécia, Dinamarca e Finlândia esses valores eram em 2019 de 65,2%, 67 % e de 58,8%, respetivamente.)

 

(Cálculos próprios a partir de Trade Unions data set: https://stats.oecd.org/)

Entre os economistas do trabalho, é praticamente consensual o reconhecimento de que a taxa de sindicalização se encontra em declínio de tempo longo. O fenómeno é explicado pelas transformações do mercado de trabalho em ambiente de globalização, pelo crescimento da precarização do trabalho que paradoxalmente afasta os trabalhadores da sindicalização e também pelo próprio comportamento dos sindicatos que tendem a defender mais os que já têm emprego ou estão desempregados à procura de um novo emprego relativamente aos que procuram o primeiro emprego. Mas o economista João Cerejeira, antigo meu aluno na FEP numa disciplina sobre ciclos económicos, citado ontem na CNN pela jornalista Joana Azevedo Viana, referia com pertinência que” esta diminuição da representatividade sindical ao nível da filiação não quer dizer que os sindicatos não tenham importância nas relações laborais – pelo contrário, cerca de 80% do emprego está abrangido por contratos coletivos de trabalho e outros efeitos da negociação coletiva, ou seja, apesar de terem taxas de filiação relativamente reduzidas, a rondar os 15%, os sindicatos acabam por ter um efeito guarda-chuva para quatro quintos do emprego em Portugal”. João Cerejeira destaca ainda a fratura etária que atinge o sindicalismo, observada com clareza na maior incapacidade das organizações sindicais atraírem os trabalhadores mais jovens.

É neste desencontro entre o declínio pesado da taxa de sindicalização e o ainda relativamente forte poder de influência dos sindicatos na regulação do emprego em Portugal que devemos situar o estado da arte da defesa dos interesses da classe trabalhadora num mercado de trabalho que de facto não tem muito que ver com o observado em 1977, quando a taxa de sindicalização era de 63% ao nível do universo escandinavo.

O fenómeno do crescimento dos movimentos sindicais inorgânicos, caso por exemplo do STOP nos professores, constitui uma novidade inequívoca e representa talvez o maior desafio (talvez mais forte do que a queda de trabalhadores inscritos) ao sindicalismo tradicional. Não é ainda claro em que medida este movimento mais inorgânico e fortemente baseado na utilização das redes sociais como forma de mobilização tenderá ou não a substituir o sindicalismo mais tradicional e por isso mais previsível em negociações salariais e de condições de trabalho. O argumento de que o radicalismo, penetrando mais facilmente nestes movimentos inorgânicos, representará a principal ameaça para o próprio movimento sindical carece ainda de demonstração e evidência credíveis.

O exemplo da força sindical e do seu papel contributivo na AutoEuropa em Palmela, com uma influência determinante nos acordos e empresa que tem sido possível estabelecer (acaba de ser assinado mais um acordo para dois anos, que garante aumentos salariais de 6,8% em 2024 e de 2,6% ou 0,6% acima da inflação em 2025, com 61,5% de votos a favor), permite-me introduzir um novo ponto que considero essencial. O sindicalismo tenderá a revigorar-se se for capaz de se articular com o processo de exigência de mais democracia na organização do processo de trabalho nas empresas. É no campo concreto da empresa, da sua organização e dos seus níveis e potencial de produtividade que as reivindicações salariais podem ser conduzidas com credibilidade e realismo.

Sabemos que nem sempre o sindicalismo mais tradicional se articula bem com os movimentos mais de base operando nas empresas em favor de mais democracia e participação na vida das empresas. Este é aliás o principal desafio que as forças da esquerda democrática têm encontrado na sua afirmação, traduzida numa certa incapacidade de compreender a dimensão da organização empresarial.

Por fim, existe uma outra linha de investigação que não pode ser desvalorizada. A crescente concentração empresarial a que temos vindo a assistir no capitalismo moderno provoca importantes efeitos na procura de trabalho, influenciando-a de modo gritante, com progressiva “monopolização de procura”. Muito dificilmente poderemos interpretar o aumento da desigualdade observada nas economias mais avançadas sem o ligarmos quer ao declínio da taxa de sindicalização, quer às intensas transformações da procura de trabalho por efeito da concentração empresarial.

Sim, o 1º de Maio de 1974 é hoje uma miragem e existem razões estruturais plausíveis para o compreender. Mas imaginar que o papel dos sindicatos na regulação do trabalho e do emprego pode ser ignorado ou substituído por outra qualquer inorganicidade parece-me demasiado apressado e sobretudo perigoso.

 

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