sexta-feira, 17 de maio de 2024

PLANANDO SOBRE UM AEROPORTO ADIADO

 


(Este espaço de reflexão não foi concebido para glorificar a unanimidade entre quem nele escreve, até porque a liberdade criativa é total e não existe aqui qualquer reverência respeitosa e formal que impeça os escribas de serviço de escrever o que lhes dá na gana ou sobre o que lhes vai na alma. Por isso, não se admirem os nossos leitores sobre a dissonância de argumentação que o tema do aeroporto suscita, à qual os escribas deste blogue não escapam. A matéria é complexa e o título que escolhi para este post é uma tentativa de escapar a um outro que poderia ser o de Voando sobre um Ninho de Cucos, invocando o tema da psiquiatria aeroportuária em Portugal. Quando avanço para esta questão do eterno adiamento das decisões aeroportuárias em Portugal, relembro dois princípios que fui expondo neste espaço e que estão longe de ser consensuais cá dentro. Primeiro, o voluntarismo da ideia de um grande hub em Lisboa, em direta concorrência com o hub de Madrid, sempre me causou algumas alergias e nunca o confundi com a cedência ao eterno tema da falta de ambição nacional. Não é um problema de falta de ambição, é antes uma perceção rigorosa da desproporção de condições de partida que os dois projetos apresentam e aqui não há que enganar: a estrela de Madrid é poderosa e o que temos de conseguir é mitigar esse brilho, encontrando nichos de posicionamento para a nossa escala no mundo. Segundo, sempre considerei que a localização do Humberto Delgado no coração de Lisboa é um atentado à segurança física e ambiental da Cidade de Lisboa, ao contrário do que tem pensado a nossa elite que vive em Belas ou em sítios mais recatados e não tem de suportar a intrusão diária de ruído e riscos de segurança pelo facto de ser um aeroporto praticamente no centro da Cidade. Com base nestes dois princípios ou pressupostos de pensamento, vou tentar ensaiar algumas reflexões sobre a por muitos considerada decisão histórica do governo AD avançar com o projeto.)

Por mais tonta e precária que seja a decisão política em Portugal, e como ela tem cedido a esse tipo de vulnerabilidade, penso que o estudo da Comissão Técnica Independente representa um marco incontornável que qualquer governo, independentemente da sua orientação política, não poderia ignorar. Como consultor ao longo de uma vida, não tenho qualquer ilusão de que existam estudos técnicos bacteriologicamente puros e inatacáveis. Quanto mais no País existir uma cultura cívica de crítica rigorosa, mais a consultoria técnica evoluirá e será sujeita a desafios que uma sociedade amorfa e balofa não é capaz de criar. Mas para mim o que conta neste caso é a confiança que tenho nos elementos que integram a Comissão Técnica Independente e sabemos como a sua atividade foi sujeita a enormes pressões. Um dia, penso que a Professora Rosário Partidário e a sua equipa poderão documentar algumas dessas pressões, designadamente a divergência entre o discurso público de alguns stakeholders auscultados e a sua participação efetiva no processo de auscultação (já perceberam que me estou a referir essencialmente à ANA e à VINCI neste processo). Nesta perspetiva, tenho a máxima confiança científica e técnica em quem se ocupou das previsões de procura que enquadraram a decisão da CTI (Professor José Manuel Viegas) e por isso embora possa ter uma perspetiva crítica sobre essa dimensão do estudo da CTI não tenho quaisquer razões para duvidar da consistência das mesmas.

Mas a liberdade crítica pode levar-nos a perguntar: será que os estudos da CTI refletiram o impacto previsível na procura de transporte aéreo de todo o processo relativo à descarbonização do transporte aéreo? Não tenho dúvidas que sim e também não tenho dúvidas de que o estudo considerou que a previsão é realizada num contexto de grande indeterminação de soluções. Pode ser por exemplo que a inovação científica e tecnológica venha a revolucionar a matéria dos combustíveis para os aviões ou que a tecnologia destes aponte para outros rumos de materiais e construções. Mas não há qualquer segurança que a procura de transporte aéreo vá ser atingida pela consciência ambiental de quem viaja. Claro que se pretendermos projetar um novo aeroporto com menos indeterminação nestas matérias, teríamos de adiar uma vez mais o processo e o problema é que a situação do aeroporto de Lisboa tornaria essa decisão ruinosa e geradora de riscos elevados.

Por isso, dificilmente algum governo em exercício, cá ou noutro país, poderá assumir o desplante de considerar à partida o encolhimento do transporte aéreo, enquanto decisão de contribuir voluntaria e abertamente para a descarbonização das sociedades. Acrescentemos-lhe 50 anos de indecisão e um estudo de suporte com a qualidade do da CTI e penso que será legítimo admitir que o governo da AD não tinha alternativa. Não podemos ignorar que estamos ainda no coração da indeterminação da transição climática. Isto não significa, como veremos, que não haja gatos escondidos com cauda de fora nesta decisão que pareceu conceder ao governo de Montenegro a ilusão de que poderia afinal governar..

Outra questão bem colocada pelo meu colega do lado é o possível efeito perverso da opção aeroportuária assumida relativamente à perversidade (em termos de baixo nível de complexificação) do modo de crescimento e desenvolvimento da economia portuguesa. Já aqui me referi a esta questão, que resulta do facto do turismo em Portugal, pelo crescimento de procura que tem suscitado, impor na prática à economia portuguesa uma trajetória em que é mais difícil fazer vingar os fatores de complexificação económica e estrutural induzidos pela inovação e conhecimento. Tenho para mim que a questão pode ser simplesmente regulada, não sendo já possível fazer o reset da economia de modo a proporcionar-lhe uma trajetória de desenvolvimento e complexificação conforme as regras. Um aeroporto não constitui apenas um fator de atração (fator in) de novos visitantes. Ele é também uma oportunidade de garantir aos residentes e empresas a capacidade de mobilidade para todo o mundo (fator out) e, se admitirmos que o rendimento per capita português irá continuar a aumentar, então essa procura de mobilidade no lazer e nos negócios tenderá a intensificar-se.

Por isso, em meu entender, é de regulação dos efeitos perversos do turismo que teremos de falar nos próximos tempos, de modo a impedir que essa alocação de recursos perturbe a complexificação que a trajetória da inovação irá continuar a proporcionar. Por isso, nesta perspetiva, a decisão de reverter a regulação do alojamento local decidida pelo governo de Montenegro é errada, matéria que não deve ser confundida com a diabolização desse alojamento local que uma certa esquerda em Portugal desenvolve alegremente.

Este tipo de ideias representa, em meu entender, um exemplo da rejeição possível do unanimismo que a questão do aeroporto terá suscitado nas elites portuguesas, elas próprias pouco habituadas ao pensamento crítico, porque grande parte das mesmas acabam sempre por estar direta ou indiretamente comprometidas com as decisões políticas, designadamente as de grande porte. Por isso, entendo que deverá ser no longo processo de planeamento e implementação do novo aeroporto que teremos de suscitar as devidas adaptações ao contexto de indeterminação em que ela vai ocorrer. Mas, como referia anteriormente, esta decisão do governo de Montenegro tem algo de oculto que não me agrada e é sobre este último aspeto que gostaria de concluir o post.

Comecei por estranhar a súbita disponibilidade para a negociação que a ANA veio a público exprimir. Claro que poderemos associar o facto à vasta elasticidade política do inefável Arnaut. Com um Governo AD ele próprio pode virar o bico ao prego. Mas acho que há alguma coisa mais na manga, aliás como Daniel Oliveira ontem o assinalou no Eixo do Mal. Contrariando o parecer da CTI, e a decisão política pode fazê-lo, a decisão de aprovação de Alcochete é acompanhada da permissão de aumento de capacidade do Humberto Delgado, projetando-a de 38 para 45 voos hora. Ou seja, Pinto Luz e Montenegro encontraram aqui maneira de agradar e responder às exigências da ANA, contrariando o parecer da CTI. O esganiçado Moedas bateu palmas, mas conviria que os lisboetas compreendessem que o brilharete decisório do Governo foi concretizado à custa da segurança física e ambiental dos lisboetas, durante quanto tempo não o sabemos, tudo dependerá da celeridade com que o projeto de Alcochete for concretizado.

 

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