quarta-feira, 15 de maio de 2024

PROTECIONISMO, AÍ VAMOS NÓS!

 


(Paul Krugman está cheio de razão quando refere que, em matéria de proteção dos interesses económicos americanos, a distinção entre o cavernoso e disparatado Trump e o velhote de boas maneiras Biden não é assim tão fácil de estabelecer. Curiosamente, embora nos queixemos que os macroeconomistas têm perdido capacidade de influência junto do poder político, o debate sobre o protecionismo necessário face aos impactos das importações chinesas foi essencialmente aberto com a publicação em 2013 de um estudo dos economistas David Autor, David Dorn e Gordon Hanson, designado de o Síndroma Chinês. O referido estudo sinalizava sobretudo o impacto localizado da destruição de empregos provocado pelas importações chinesas de produtos manufaturados. Esse impacto geograficamente muito localizado era bem mais importante politicamente falando do que a magnitude do emprego destruído, sobretudo para uma economia com a flexibilidade de mercado de trabalho da americana. Desde essa data, a crispação comercial entre os EUA e a China floresceu, situando-se hoje num estádio que supera o ambiente suscitado pelo artigo de Autor e seus amigos. Apertado pelas circunstâncias e por uma reeleição cada vez mais problemática, Biden entrou deliberadamente pelo mundo da política industrial adentro. Os seus Inflation Reduction Act (economia verde e tecnologias associadas) e Chips and Science Act (tentativa de recuperar alguma autonomia tecnológica em matéria de semicondutores), além de terem por si só colocado a política industrial entre as matérias da economia, introduziram subtilmente na prática política os temas do nacionalismo económico e do protecionismo, não com os alaridos à moda de Trump, mas sinalizando o mercado mundial de que a administração americana não iria mais consentir na autoestrada para as importações tecnológicas provenientes da China.)

As notícias mais recentes apontam para que estejamos prestes a entrar num estádio mais agressivo do protecionismo económico americano. Agora, já não limitado ao mundo fascinante da política industrial, mas abrindo pelo contrário o caminho à forma mais desabrida de protecionismo, traduzida na imposição de direitos aduaneiros sobre as importações chinesas. Os jornais americanos anunciam que está prestes a ser lançado um direito aduaneiro de 100% sobre as importações de veículos elétricos chineses, sujeitando-os por isso a um sério constrangimento de concorrência no mercado americano. Se havia dúvidas quanto ao facto da economia mundial se ter alterado profundamente, este anúncio elimina quaisquer interrogações sobre essa alteração. A economia campeã do discurso da globalização atinge frontalmente as importações chinesas de veículos elétricos.

Vale a pena contextualizar esta medida.

Sabemos que a mobilidade elétrica constitui uma das peças-chave da descarbonização das economias. Mas uma coisa é o discurso sobre essa necessidade e os incentivos à compra desses veículos, outra bem diferente é a subsidiação da produção. Os chineses optaram por esta última modalidade. Rapidamente, há quem diga devido a um excesso de capacidade relativamente ao mercado nacional, ainda pouco solvente, os chineses inundaram os mercados europeu e americano de veículos elétricos, a preços bem mais competitivos do que os associados à produção americana (Tesla, sobretudo) e europeia em geral (todas as principais marcas que se aventuraram pelo mercado elétrico). A transição para a economia verde encontra assim nos EUA um constrangimento adicional. Até agora, os veículos elétricos chineses pareciam acessíveis às famílias que podiam assim entrar na mobilidade elétrica sem ter de aceder a preços não solventes para o seu rendimento. Com a mais do que esperada duplicação do preço das viaturas chinesas no mercado americano, ou os incentivos à aquisição de veículos elétricos americanos terão de aumentar sensivelmente ou então a mobilidade elétrica vai ter de esperar.

Pode, entretanto, perguntar-se – o que está a acontecer nesta matéria na Europa?

A nível da evidência mais pontual, esta semana o grupo automóvel STELLANTIS anunciou que iria comercializar veículos chineses e que não desdenhava a possibilidade de inclusivamente os produzir. Ou seja, se esta evidência tiver generalização, o mundo da União não se alimenta da mesma crispação face às importações chinesas.

Tenho andado atento ao pulsar europeu do ponto de vista do que de concreto pode esperar-se em matéria de resposta ao declínio industrial tão diagnosticado. A pandemia mostrou que a Europa emergia mais vulnerável do que se pensava, boas almas falaram de reindustrialização, mas é de facto exasperante tomar consciência dos grandes desvios de tempo que se formam entre o crepitar de uma ideia e a sua tradução em políticas europeias. A administração Biden tem dois Acts a fervilhar de investimento e ressurgimento industrial. Os diretórios europeus parecem ainda não estar convencidos de que as políticas industriais vieram para ficar. A União Europeia não tem obrigatoriamente de alinhar com o protecionismo americano, sobretudo porque ele pode também incidir em importações europeias. Mas decisões políticas são necessárias para construir um novo paradigma de relacionamento com a China. Nem uma coisa nem outra é que não. A classe média europeia, principalmente a mobilizada para a mobilidade elétrica talvez agradeça poder aceder aos veículos chineses mais baratos, mas de reindustrialização estamos conversados. Os industriais portugueses já perceberam, felizmente, que não podem estar à espera de que os discursos passem à prática. Estão por isso habituados a dar corda aos sapatos, por sua livre conta e risco. E fazem bem.

 

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