domingo, 19 de maio de 2024

OS MEUS 75 E A GLOBALIZAÇÃO

 


(Bondade vossa, especialmente a do meu colega do lado, de relembrar o 18 de maio dos meus 75 anos, coisa pouca e insignificante neste universo, pesada que baste para o próprio, sobretudo pela ansiedade que provoca antecipar o que nos espera neste universo complexo do aumento da esperança de vida, sem que possamos controlar eficazmente as condições e a qualidade de vida que nos estão reservadas. Por natureza pessoal, sempre valorizei mais o presente, por exemplo o ato da escrita, do que o sempre contido passado e na lógica dos comportamentos inter-temporais que alguma Economia me ensinou a trabalhar, espero pacientemente que o facto de nunca ter vivido intensamente no passado me proporcione alguma extensão de vida, com um mínimo de qualidade e sobretudo a dois, porque, mais do que tudo, a companheira o merece. Mas dou de barato que terei de viver com essa ansiedade de saber que aterragem me está atribuída, se em modo de soft landing como a economia parece ter recuperado do surto inflacionista, se em modo mais agitado. A melhor forma de combater essa ansiedade parece ser a de viver os momentos do presente, ouvindo Schubert e experimentando o novo leitor de CD’s, presente de aniversário, porque o velho Technics dava sinais de esgotamento e porque isso de música em streaming continua a ser mera experiência pontual, preciso do material dos CD e do vynil para sentir a música. E nesta visão algo intimista do que me espera para a frente ocorreu-me que tenho matéria para regressar ao tema da globalização e da difícil situação em que se encontra, cruzando-a com o modo como tenho vivido a economia como disciplina de investigação nesta vida já longa.)

 


A minha iniciação disciplinar pela economia do desenvolvimento nos bons e aventurosos tempos da FEP em rebeldia para com o seu passado concretizou-se num ambiente crítico dos rumos da globalização. Era tempo de reunir armas contra o discurso inflamado do livre-câmbio e quantas horas passei e pestanas gastei na investigação da Troca Desigual, sobretudo segundo a tradição neo-ricardiana de Arghiri Emmanuel. Foi aí que compreendi que as vantagens comparativas ricardianas tinham também uma interpretação dinâmica, a das condições do desenvolvimento desigual e que o argumento de que ambos os parceiros da troca podiam ganhar com o livre-câmbio ocultava o domínio das condições de especialização e as vantagens de longo prazo. A especialização nunca é neutra do ponto de vista da eficiência dinâmica que proporciona e que há especializações mais virtuosas quando perspetivadas no tempo longo.

Porém, esta perceção nunca me conduziu a uma lógica de ignorar a necessária presença na economia mundial, conduzia isso sim a uma perspetiva reformista da globalização, obviamente a mais difícil de concretizar, sobretudo nas condições de ausência de um modelo de governança capaz à escala mundial e sem cabeças iluminadas pensantes como a de Keynes quando ajudou a conceber a ordem mundial de Bretton Woods.

Mais adiante, quando concebi um curso de Globalização e Desenvolvimento Económico, compreendi que, independentemente de todos os vícios e necessidades de reforma, a globalização tinha arrancado da pobreza absoluta massas importantes de população mundial, sendo por isso cada vez imperiosa e necessária a sua reforma inteligente. Dani Rodrik foi uma dessas vozes relevantes quando mostrou que, pelos trilhos que a globalização percorria, ela era incapaz de simultaneamente de respeitar o estado nação (origem das políticas públicas), as condições básicas da democracia da barganha social em defesa dos interesses do trabalho e o aprofundamento da integração económica mundial.

Ora, tudo isso é questionado abertamente e com fúria num contexto de hoje em que os projetos nacionalistas e bélicos tomaram conta da crítica à globalização, com uma profunda confusão entre esquerda e direita. O reformismo bondoso da globalização (e os problemas em que a Organização Mundial do Comércio são disso a mais fina ilustração) cedeu o passo a uma antecipação possível da barbárie. Não posso estar mais de acordo com a The Economist quando a revista refere que só quando ela tiver desaparecido os críticos da globalização sentirão a sua falta. Podem crer que não virei oportunisticamente liberal à última hora para me entregar nos braços de uma revista que é o expoente máximo dessa corrente. Mas o facto é que o reformismo inteligente da globalização falhou e cedeu o passo à fúria incontida dos nacionalismos. A história mostra-nos que quando isso acontece a guerra está próxima, neste caso, não está próxima, já chegou.

 

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