sexta-feira, 24 de maio de 2024

MODERNIDADE EFETIVA E SIMULADA NO FUTEBOL PORTUGUÊS

 

(Já há algum tempo que pensara escrever uma crónica blogueira sobre esta questão, mas decidi aguardar pela conclusão do campeonato e talvez até devesse esperar pelo fecho da época nacional com a final da Taça no próximo sábado. Mas, à míngua de tema para hoje, decidi que a reflexão deveria entrar em cadeia de montagem. Fazendo jus ao apelo da memória, creio que foi pelos fins dos anos 80 e inícios dos 90 que ensaiei algumas reflexões sobre o tema, sobretudo a nível regional, quando me interessava pela questão organizacional a norte, sobre a qual fui sempre bastante crítico. Embora não fazendo parte da confraria, entendia na época que a organização do FCP sugeria algumas pistas interessantes para a emergência de uma certa modernidade desportiva, numa altura em que pelos lados da Segunda Circular essa modernidade estava bastante adiada e, sem surpresa, os resultados de então justificavam em meu entender o descalabro a sul. Esta minha propensão para teorizar o que se calhar não tem dignidade suficiente para isso levou-me a ignorar na época que esses sinais de modernidade coexistiam com dimensões arcaicas e de uma modernidade simulada, de que os 42 anos de consulado de Pinto da Costa constituem a principal manifestação. E se a vitória esmagadora de Villas-Boas veio dar um alento aos sinais de modernidade, o que vai sendo revelado durante a lenta transição para a mudança de poder, com diferentes matizes e evidências de arcaísmo, faz-nos pensar sobre o peso da não modernidade, afinal 42 anos é muito tempo. Mas ao contrário do que poderia parecer não é sobre a transição no Dragão, mas antes sobre uma perspetiva mais geral do futebol português, pelo menos com a evidência dos três grandes que concentrarei a minha reflexão.)

Analisemos primeiro as questões conceptuais em torno das quais organizo a minha reflexão. A atividade do futebol transformou-se, como sabemos, numa multifacetada operação de geração de valor económico. Se é verdade que os clubes subsistem e que o seu papel de serviço público complementar do que poderia ser a intervenção pública em favor de uma cultura cívica e desportiva deve ser sempre realçado, no caso do futebol, a realidade das SAD tende a sobrepor-se a tudo o resto. Nesse contexto, designo por modernidade a evolução do modelo de gestão e de organização da operação, com níveis de profissionalismo e competência técnica em linha com a magnitude dos recursos e do investimento financeiro que tornam possíveis. Designadamente a internacionalização do investimento financeiro, com destaque para o que se passe na Premier League inglesa, mas já com extensões em Portugal, introduz no negócio um nível de exigência de gestão e organização que implicam a tal transição para a modernidade. Em contraponto com isto, designo por evidências de arcaísmo todas as manifestações do modelo anterior, em que se destacam a personalização da gestão e da liderança, a criação de uma rede cúmplice de interesses onde se incluem os grupos organizados de adeptos e as suas relações menos claras com o negócio, a corrupção, a tolerância perante a violência, o controlo da comunicação, o universo oculto das transferências e das comissões, o sobrepeso da arbitragem.

Olhando por agora para os três grandes, Benfica, Porto e Sporting tiveram no passado recente os seus intérpretes do arcaísmo mais incompatível com a modernidade futebolística – o consulado trágico-cómico de Bruno Carvalho no Sporting, o legado populista e obscuro de Luís Filipe Vieira no Benfica e a eternização no poder de Pinto da Costa no Porto. Esses legados tenderam a fazer predominar o arcaísmo (diversificado segundo os modelos) em detrimento da afirmação progressiva dos valores da modernidade, com uma frente de combate Lisboa-Porto a apimentar todo este processo que serviu, no caso da eternização no poder de Pinto da Costa, como fator supletivo de alimentação.

O que se passa neste momento é a ocorrência de processos de transição nos três clubes, dos quais destaco a que está a ocorrer no Sporting na sequência da articulação virtuosa entre a liderança de Frederico Varandas e a influência de Rúben Amorim como treinador. Considero que a transição no Benfica é mais complexa e lenta, sobretudo pelo peso dos arcaísmos na organização que a herança de Luís Filipe Vieira deixou atrás de si. No caso do FCP, a eternização no poder de Pinto da Costa adiou irremediavelmente a transição necessária, sobretudo com o desplante das amizades de sangue (a relação com a família Madureira é paradigmática do que estou a afirmar) e esperemos que o encontro da solução Villas-Boas com a realidade não vá implicar a revelação de mais esqueletos no armário.

Posso estar enganado com esta mania das teorizações sobre campos instáveis, mas parece-me que o Sporting está neste momento na frente da progressão para a modernidade e talvez não seja por acaso o número de títulos recentes ganhos pela equipa de Alvalade. Recordo-me de ler uma entrevista do grande metodólogo do desporto Manuel Sérgio em que, referindo-se a Mourinho, ele dizia que a tipologia de treinadores que iria vingar no futebol moderno era o modelo de treinador global – da equipa, do jogo, da saúde física, das bancas e adeptos, das direções e gestores, da comunicação, enfim de toda a fileira. Reportando-me à palavra avisada do Mestre Professor Sérgio, diria que Rúben Amorim é no quadro dos treinadores portugueses o que está mais próximo dessa tipologia de treinador global. Se excetuarmos o inexplicável caso da famigerada viagem a Inglaterra com o título ainda em interrogação, vá lá saber-se o que a motivou, a prática de Amorim bate bem certo com a modernidade de que tenho vindo a falar e o facto de Varandas ter entendido essa importância só reforça a minha ideia.

Recomendo por isso o artigo reportagem que a revista do Expresso hoje publica sobre Ruben Amorim. Lá poderemos recolher informação relevante para compreender o Amorim que está no banco e como ele comunica (vejam por exemplo a maneira como ele explica a dificuldade de entender o modo como o Atalanta joga, aliás como Xavi Alonso estará ainda hoje a tentar compreender a banhada que apanhou em Dublin). Ou seja, também pela relação virtuosa (ou acidentada) entre treinador e liderança na gestão para a modernidade se construirão as transições virtuosas de que o futebol português necessita.

Quanto aos restantes clubes e SAD, tenho pouca informação e tudo indica que algumas das lideranças de gestão (com relevo para o Braga) relevem ainda do mais profundo arcaísmo. Mas os casos de Famalicão, Arouca, Casa Pia e Estoril, por exemplo, podem ser casos a monitorizar com atenção.com

Nota final

Reconheçam, por favor, este esforço de distanciação de alguém que sofre bastante com as instabilidades da trajetória da Águia (Vitória só de nome)!

 

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