(O Presidente da Assembleia da República, José Pedro de Aguiar-Branco, assumiu o cargo apostado em marcar presença como um Presidente liberal, de convicções democráticas consolidadas e não foi certamente por acaso que desfilou este ano na Avenida da Liberdade de cravo ao peito. E pensou seguramente afirmá-lo no exercício diário de condução dos trabalhos da Assembleia, procurando fazer a diferença face à dimensão mais combativa e belicosa de Augusto Santos Silva. Está no seu direito, tem legitimidade para o fazer e num contexto parlamentar normal apreciaríamos essa clareza de princípios e valores. Mas, em meu entender, Aguiar-Branco não terá entendido na perfeição que o Parlamento de hoje não é o mesmo do que funcionava antes destas novas eleições. É que, apesar de todos os floreados e tentativas de impressionar o papalvo do jornalista médio, hoje em declínio devastador de qualidade e em proporção direta à precariedade com que a profissão é exercida, o Parlamento acolhe 50 personagens apostados em desconstruir a democracia parlamentar. Obviamente que face a estas excentricidades parlamentares, a defesa pura e simples da liberdade de expressão no palco parlamentar, e essas 50 personagens falam sobretudo para fora e para os papalvos que se matam por dicas do tipo Chega, vai ser completamente instrumentalizada por essa agenda desestabilizadora. Porque será capaz de desaforos desse quilate sempre que a entenda que a situação lhe é favorável, André Ventura não se coibiu de voluntária e desabridamente insultar o povo turco, apenas para poder fazer um trocadilho barato com a capacidade de execução do aeroporto de Istambul quando comparada com a que se estima ser possível para a construção de Alcochete. Do alto dos seus valores e das suas convicções em favor da liberdade de expressão, Aguiar-Branco disse alto e com bom som que nunca ouviriam da sua parte qualquer intenção de cercear a liberdade de expressão aos deputados do Chega, por mais desabridas e insultuosas que possam ser as suas piruetas retóricas. Acho que vamos ter um sério problema, porque à candura dos valores de Aguiar-Branco vai contrapor-se a reiterada vontade do grupo dos 50 instrumentalizar essa liberdade em favor de valores e conceitos que são precisamente o contrário do que Aguiar-Branco pretende defender, de cravo ao peito ou sem ele não interessa.
Nas condições atuais de ameaça aberta à integridade dos valores da democracia, a atividade parlamentar não pode tolerar que a liberdade de expressão seja sistematicamente utilizada para o insulto e para a defesa da negação da democracia. Não está em causa que o Presidente da Assembleia da República queira desempenhar o seu cargo de Presidente com uma outra postura diferente da que Augusto Santos Silva imprimiu ao ser exercício. Está no seu legítimo direito. Mas o que não pode fazer é tábua rasa dos que usam o insulto a outros povos, populações e países como forma de expressão parlamentar para agradar aos que não debatem, mas ululam para alimentar a sua corte de fãs desesperados nas redes sociais. O lavo daqui as minhas mãos que Aguiar-Branco quis expressar em defesa dos seus princípios de liberdade de expressão não é compatível com as responsabilidades que o Presidente da Assembleia tem para manter o trabalho parlamentar num nível de dignidade próprio das democracias orçamentais. Não se pretende que o trabalho parlamentar se transforme na dinâmica de uma corte insípida e assética. O debate mais duro é, por vezes necessário, mas há limites a respeitar.
Eu sei que talvez a democracia portuguesa não tenha
encontrado ainda a sua postura correta para se combater uma força política como
o Chega e que o risco da autovitimização pode acontecer sobretudo por Ventura é
um tipo hábil nessa barganha, preparado para defender A e o seu contrário num ápice
e com a maior das latas. Mas existem princípios de dignidade de relacionamento
com os outros, sejam populações, países, nações ou culturas que não podem ser
ultrapassados nos trabalhos parlamentares. Até porque ou muito me engano,
Ventura e seus pares, depois de apalparem o pulso à candura dos princípios de
Aguiar-Branco, vão entrar na mais pura provocação direta aos seus pares, nem
que para isso recorram ao insulto dos que não poderão defender-se no teatro dos
trabalhos parlamentares. E não será bonito assistir ao achincalhamento possível
de um bem-intencionado na condução dos trabalhos da Assembleia. Além disso, ter alguém a presidir à Assembleia da República e contribuir para normalizar o Chega não é compatível com as funções que a Constituição lhe atribui.
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