sexta-feira, 10 de maio de 2024

A TERRÍVEL COMPETIÇÃO PELA ATENÇÃO POSSÍVEL

 


(Regresso por agora ao conforto e qualidade jornalística e gráfica da New Yorker, elitista para muitos, até pedante para outros, mas que continua a ser para mim uma boa recordatória do ecossistema de Nova Iorque, agora que provavelmente terei de viver apenas com recordações daquela urbe, dada a reduzida probabilidade de para lá viajar de novo. No âmbito dos célebres Annals for Inquiry, jornalismo de investigação do melhor que conheço, um artigo de Nathan Heller chamou-me à atenção, já que correspondia a um dos temas que já tinha pensado abordar neste blogue, sem que, contudo, a evidência ou o estímulo certos tivessem acontecido. O tema do artigo tem por contexto o aumento do défice de atenção de que a generalidade dos cidadãos comuns estará a padecer, jovens e velhos, homens e mulheres, pelo menos aqui não haverá discriminação de género. Este défice de atenção tem por fenómeno associado, comercial, mas também cultural, a intensa competição pelos parcos segundos da nossa atenção. Essa competição infernal acaba, em meu entender, por agudizar o problema, pois o modo como as mensagens escritas e visuais são construídas para conseguir atrair a nossa atenção tenderão a cavar ainda mais a nossa predileção pelo instante, visto, lido ou simplesmente escutado. Podemos imaginar que se existe essa competição infernal é porque existirão aqui condições de criação de valor e assim a atenção transformou-se num recurso económico raro, tendendo a retribuir com amplos retornos quem ganhar a atenção de alguém. Como é óbvio, se pensarmos este problema no plano dos relacionamentos pessoais, o que estará em gestação é tenebroso e assustador, se imaginarmos que o amor, a amizade, a compaixão, a simples disponibilidade de um ombro para escutar um lamento passam também eles a entrar nessa batalha infernal pela disputa da nossa atenção.)

O artigo de Nathan Heller mergulha profundamente sobre as razões e entorno da perda da nossa capacidade de prestar atenção a alguma coisa. E não será apenas a tecnologia da comunicação, com o seu peculiar modo de expressão da mensagem, visual, literária ou auditiva, que poderá arcar com a responsabilidade de explicar o aumento do défice de atenção do cidadão mais comum. A própria organização da vida profissional e urbana e a aceleração do tempo de resposta a qualquer desafio que lhe anda associada tendem a reforçar essa tendência. Nessa perspetiva, a tecnologia de comunicação, mais do que a causa do problema, poderia ser entendida como uma consequência, protagonizando algo de adaptação face ao rol de tipos de comunicação lenta e pouco estimulante.

O que o artigo tem de curioso é a reunião de evidência diversa para justificar algo que está já muito para além da conhecida acusação de que a televisão era alvo nos anos 90 de ser uma força demoníaca, lesiva da atenção das pessoas.

A evidência vai desde a evolução dos indicadores de literacia da OCDE (leitura, matemática e ciência) em queda em parte pelo défice de atenção que os jovens analisados manifestavam, parte da qual é explicada pelos próprios como resultado do que poderíamos designar de distração digital, até outras evidências como a crescente atenção da investigação médica e clínica pela perda de capacidade de atenção de muitos pacientes. Se esta evidência está certa, os problemas de estudo e de leitura dos jovens (a raridade da atenção livro, por exemplo) poderão ser também entendidos como o resultado de um problema de défice de atenção. E não será exagerado admitir que, em busca da atenção dos jovens, as linguagens de aprendizagem estejam não a contribuir para a resolução do problema, mas antes para reproduzir a perda de capacidade de atenção. Quer isto significar que ensinar a recuperar a capacidade de atenção será talvez mais importante do que inovar nas piruetas da pedagogia para lograr atrair a atenção de quem a perdeu. Caros Professores e Pedagogos, parem de proclamar e invetivar o défice de atenção dos alunos, ensinem-nos antes a recuperar essa capacidade. Desafiante, não?

A investigadora da New Yorker mobiliza ainda evidência que nos mostra que a média de prestação de atenção ao material de um dado écran não ultrapassará dois minutos e meio ou de outros estudos que baixam essa capacidade para algo mais não superior a quarenta e sete segundos.

Imagino que os psicólogos e a gente do marketing estejam deliciados com esta matéria, que não é mais do que a versão exacerbada do como atrair a atenção de alguém de outros tempos, sobretudo a partir do momento em que a tecnologia permite definir métricas para medir o melhor desempenho de como a atrair a atenção em perda, avançando em frentes como a supervisão do olhar ou a codificação facial. E, claro, quando a métrica aparece, isso significa que a atenção se transformou numa espécie de moeda, ou seja, a atenção é geradora de valor. O mecanismo é algo deste tipo: se prestares atenção a alguma coisa como sendo interessante, isso transformá-la-á em algo de interessante. Avaliando-a estás a atribuir-lhe um valor. É neste mundo tenebroso em que estamos, aliás como todos os dias pressentimos que as nossas incursões pela internet são habilmente conduzidas por algoritmos inteligentes que identificam rapidamente o nosso padrão de escolhas e coerentemente os diversificam sem quebrar o padrão. Convém recordar que, na maioria das vezes, fomos nós próprios a facilitar a exploração oculta da nossa atenção comercial.

E, se tinha dúvidas que a sociedade americana reúne por excelência todas as excentricidades possíveis deste mundo, reduzia-as a zero com a leitura da parte final do artigo. No âmbito de uma visita-entrevista a um historiador de ciência, radicado em Princeton, D. Graham Burnett, Nathan Heller desenvolve uma investigação sobre uma sociedade secreta dedicada precisamente ao tema da perda da capacidade de atenção, com o nome sugestivo de Ordem do Terceiro Pássaro, inspirada na tradição de três pássaros contemplarem uma pintura de Zeuxis na Grécia antiga. Se o primeiro pássaro fugiu ao contemplar a pintura, o segundo aproximou-se e tentou iludido comer a fruta representada na pintura, ao passo que o terceiro se limitou a contemplá-la, com atenção, claro.

Explorar esta outra dimensão do artigo está fora das cogitações programadas para este post. Eu bem sei que assinar a New Yorker passa por ser um luxo (este Vosso está longe de ser uma Alma perfeita) e, por isso, peço desculpa por ter atiçado a curiosidade (uma forma de captar a atenção) para depois zarpar para outro écran qualquer.

Como compensação, fica a bela ilustração de Brian Rea que enquadra todo o artigo, que bem justifica a qualidade gráfica e artística de sempre da revista.

 

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