segunda-feira, 13 de maio de 2024

A REVOLTA DOS CAMPUS AMERICANOS (TAKE 2)

 

(Ilustração do New York Times para o artigo de David Wallace-Wells referido neste post)

(Já aqui, em primeira aproximação ao tema, analisei como a questão da Palestina parece ter ressuscitado o sentimento reivindicativo dos jovens universitários americanos, criticando violentamente a intransigência israelita. Esse ressurgimento acontece depois de uma longa hibernação, em que a deceção coletiva, o individualismo e a longa preparação para uma cultura agressiva e implacável de mérito individual se combinaram, reduzindo para lá do antecipável o espírito crítico e combativo das gerações universitárias. Na primeira aproximação ao tema, destaquei sobretudo o choque frontal entre este ressurgimento participativo e as estratégias das administrações das universidades da Primeira Liga, mais interessadas na captação de fundos e de doadores compreensivos e de mãos largas do que propriamente responder aos ímpetos reivindicativos dos estudantes. A entrada da polícia de intervenção na grande maioria dos campus, a pedido das próprias administrações, simboliza bem esse choque de perspetivas. A questão da Palestina não foi mais do que o extremar de situações não satisfatoriamente geridas em torno dos problemas de inclusão, respeito por minorias e promoção da igualdade que têm atravessado os campus americanos nos últimos tempos. Mas há outras perspetivas relevantes para analisar a agitação política vivida na grande maioria das universidades americanas. A sua relevância mede-se sobretudo pelas repercussões que elas podem assumir do ponto de vista do posicionamento político da sociedade americana face às eleições presidenciais do fim do presente ano, onde muito se joga do que pode acontecer de nefasto ao mundo de hoje, particularmente do mais desfavorecido. Ou seja, as revoltas estudantis podem ser utilizadas como elemento de medida de pulso à plasticidade da sociedade americana. É nessa linha que se orienta a minha segunda aproximação ao tema.)

Até há pouco tempo, a dualidade Democratas-Republicanos respondeu relativamente bem à diversidade de posicionamentos ideológicos emergentes na sociedade americana. Entre os Democratas, existiu sempre uma tendência mais radical e socialista, representada, por exemplo, por nomes como Bernie Sanders e Elizabeth Warren e, entre os mais novos, como Alexandria Ocasio-Cortez. As primárias democratas sempre foram a manifestação desse confronto de ideias e, embora nem sempre a unidade fosse o resultado observado após essas primárias, pode dizer-se que o universo democrata tinha essa plasticidade para não deixar sem representação essas faixas mais radicais do eleitorado americano. É óbvio que existiram sempre candidatos mais radicais, mas por serem relativamente residuais nunca deste lado do Atlântico foi possível saber com pormenor da sua existência.

Simetricamente, do lado dos Republicanos, algo de similar acontecia. Antes de Trump ter irrompido na política americana, o partido Republicano sempre conseguiu acolher alas mais radicais à direita, conservadores e reacionários até à medula, nacionalistas quanto baste e sobretudo interessados em políticas que garantissem a manutenção do status quo da desigualdade. Com Trump tudo isso foi alterado e assistiu-se a um violento “take over” do partido Republicano pelo radicalismo despudorado de direita. Assim, por exemplo, enquanto é julgado em tribunal por comportamentos que não associaríamos a um Presidente e que criam empatia para uma personagem como a atriz porno Stormy Daniels, o Washington Post desvendou outra das habilidades de Trump – ofereceu-os seus serviços aos magnatas das indústrias fósseis em troco de um cheque chorudo de mil milhões de dólares para a sua campanha para quando chegasse ao poder destruir de vez toda a tralha legislativa apontada à descarbonização da economia americana. Que me lembre, apenas Luís Pedro Nunes no Eixo do Mal último referiu este novo desplante de Trump.

Mas não é sobre os Republicanos que gostaria de concentrar a minha reflexão.

É a primeira vez que vejo esta ideia tão bem clarificada, mas creio que o jornalista David Wallace-Wells é particularmente perspicaz quando refere no New York Times a propósito das revoltas nos campus americanos o seguinte: “(…) observa-se a destruição da aliança ideológica, que se manteve relativamente firme durante cerca de uma década e meia, entre os valores claramente liberais da elite institucional do país e os valores progressivos das vozes pela justiça social. Esta estranha e instável coligação de grupos de centro-esquerda e instituições aguentou-se mais do que uma década e meia, primeiro com Obama – que para muitos parecia representar um novo tipo de ordem radical – depois no tempo de Trump que inspirou uma desesperada aliança de liberalismo resistente”.

O que Wallace-Wells nos afirma é que a revolta dos campus e o confronto aberto com as decisões das suas administrações representam, simplesmente, um exemplo de ativismo social e político para o qual a referida aliança deixou de constituir guarida segura. O que é a mesma coisa que dizer que a presença Democrata deixou de poder representar politicamente a força dessas reivindicações, a qual ficará provavelmente sem candidato nas próximas eleições presidenciais. São péssimas notícias para a candidatura de Biden. Este problema é bem mais problemático do que o associado à sua idade.

Estamos, assim, perante uma estranha dissonância. À direita, o radicalismo nacionalista e conservador capturou o partido Republicano. À esquerda, o ativismo social e político deixa de se sentir politicamente representado mesmo pela ala mais à esquerda dos Democratas.

É por isso que acho que o dúbio posicionamento de Biden face a Israel constituirá a principal insuficiência da sua candidatura e o pior é que não vejo qualquer alternativa credível de consertar este problema.

 

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