quinta-feira, 23 de maio de 2024

QUESTÕES DE CONFIANÇA

 

(As questões relativas ao “trust”, confiança nos outros, nas instituições, nos governos, sempre despertaram a minha curiosidade de interpretação e investigação sobre os processos de crescimento e desenvolvimento. A confiança está integrada numa grande caixa, que não é já negra, mas relativamente à qual o nosso conhecimento é ainda incipiente, na qual costumamos arrumar os fatores de desenvolvimento que não apresentam uma dimensão marcadamente económica. Assim, a magnitude e qualidade do capital físico e da infraestrutura, as qualificações do trabalho, a capacidade de produção de conhecimento novo gerador de valor económico, os benefícios que afluem aos já mais desenvolvidos são variáveis em que o nosso conhecimento aumentou decisivamente nos últimos tempos. Mas relativamente à tal caixa em que arrumamos os fatores para os quais temos dificuldade em encontrar métricas credíveis temos de convir que, apesar de iniciativas isoladas, mas de grande mérito científico, sobretudo sobre o papel das instituições e da qualidade da governação/governança, o nosso conhecimento continua a ser esparso, incompleto e sobretudo enfrentando dificuldades extremas de generalização, mesmo que contextualizada. As questões da confiança pertencem a esse universo desafiador em termos de fatores explicativos do desenvolvimento. Como é frequente, a tentação da inovação terminológica anda sempre à frente da capacidade explicativa e, nessa linha, a ideia de capital social equivale simplesmente a uma tentativa de agregação de fatores que dominamos mal, mas que nos sentimos confortados por tê-los arrumados numa caixa ou designação e à qual atribuímos um dado valor explicativo. É sobre estas questões que organizo o post de hoje.)

A alimentação empírica dos temas da confiança como fator de desenvolvimento é, regra geral, realizada mobilizando resultados de barómetros de inquirição das populações sobre o modo como essas populações valoram as instituições (e sabemos que umas são mais confiáveis do que outras) e o relacionamento com os outros. Ora, vivemos tempos propícios a uma profunda transformação das relações de confiança. Sabemos, por exemplo, que uma das regras básicas do populismo que se julga legítimo intérprete do pensamento do povo é disseminar desconfiança por tudo que é instituição onde as elites se passeiam e, como a xenofobia e o medo face à indeterminação e desconhecimento do outro campeiam entre os populistas, obviamente que as relações de confiança nos outros descem a níveis perigosos para a convivência social. Entendo por isso que as questões da confiança irão ser, não apenas estudadas com maior profundidade, mas assumirão um papel crucial na manutenção de níveis razoáveis de tolerância e coesão social, sem as quais a vida pode transformar-se num inferno ameaçador da felicidade e do bem-estar, afinal um dos resultados que associamos ao desenvolvimento.

Foi neste contexto que um artigo do Guardian me atraiu a atenção, sobretudo porque associa as características de um país e sociedade-modelo (com todas as reservas que estas designações nos devem merecer, pois não há países puros e isentos de mácula), neste caso a Dinamarca, às questões de um nível elevado de confiança, nos outros e nas instituições.

Sempre que viajei pela Escandinávia, e falta-me a evidência empírica da Finlândia para completar o quadro, fiquei com a sensação de que evoluindo de sul para norte, ou seja, da Dinamarca para a Noruega passando pela Suécia, a probabilidade de algum dia querer viver num daqueles países diminuía à medida que abandonava a Dinamarca. Não sei bem explicar, mas a convivialidade dinamarquesa do dia a dia tem qualquer coisa em torno das atmosferas de empatia que sempre me atraiu. Além de que as bases de um desenvolvimento intensivo em conhecimento partiram de setores vulgares de lineu como os laticínios e o mobiliário (e como eu gosto daquele mobiliário), o que me abria a esperança de que algum dia as nossas bases de desenvolvimento também nos poderiam conduzir a níveis de complexidade estrutural próximos dos da Dinamarca. Uma interpretação controversa desta minha evidência gradativa de sul para norte poderia consistir na maior proximidade ao centro da Europa e ao sul, mas a verdade é que a influência Viking é transversal e precisaria de mais consistência de cultura histórica para tentar compreender a especificidade dinamarquesa.

O artigo de Zoe Williams para o Guardian é precioso porque coloca as fichas explicativas precisamente na questão do “trust”, referindo que a Dinamarca é o país do mundo com maior nível de confiança e por aí regresso ao meu ponto.

Os números que a jornalista apresenta são impressionantes. 74% dos dinamarqueses considera que as pessoas são confiáveis, situando-se a Dinamarca no primeiro lugar dos rankings seja na confiança cívica (nas instituições) seja na confiança social (nos outros). E, citando investigadores nacionais de ciência política, estima-se que 25% da riqueza dinamarquesa seja explicada por questões de confiança (um quarto para capital físico e infraestrutural, metade para o capital humano e conhecimento), o que significa que a tal caixa negra do capital social não é suscetível de ser ignorada – um quarto é coisa que se veja. O Professor Gert Tingaard da Universidade de Aarhus escrevia em plena pandemia: “A grande maioria dos Dinamarqueses está a evidenciar um elevado ‘espírito comunitário´. Isso deve-se ao facto de confiarem uns nos outros e nas autoridades”.

O artigo documenta outras manifestações associadas a um tal nível de “trust”, mas o que me ocorre é a perceção de que as minhas evidências afetivas e de visitante acidental quanto à convivialidade das atmosferas dinamarquesas, seja em Copenhaga, Aarhus ou Alborg cidades que conheço melhor, estarão indissociavelmente ligadas aos elevados níveis de confiança social e de confiança cívica que caracterizam a Dinamarca. E não posso deixar de pensar que, embora sem dinamarqueses, mas com tugas de gema, a sociedade portuguesa poderia (já teve condições para isso) para encontrar uma trajetória virtuosa e interdependente entre desenvolvimento e “trust”. Isto se um conjunto de alucinados e dispostos a tudo, que se maravilham com os desplantes de Milei e Abascal e de toda a corja associada, não conseguirem pôr de pantanas os já reduzidos níveis de confiança existente entre nós.

 

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