(Mikel Jaso, https://elpais.com)
Falemos um pouco da Europa, pois. Ou, talvez melhor, das suas encruzilhadas e evidências de crescente desunião.
Façámo-lo em torno de um quarteto de figuras pretensamente liderantes – um homem (Emmanuel Macron) e três mulheres (Ursula von der Leyen, Giorgia Meloni e Marine Le Pen) – e de uma espécie de quarteto de países – o proclamado motor alemão, a Polónia e a Hungria e todos os outros. Enquadrados por um pano de fundo igualmente assente num quarteto de desafios avassaladores:
· o dos inimigos externos (Putin e islamismo radical, desde logo) e consequente necessidade de defesa e segurança;
· o dos inimigos internos (entre eurocéticos e extremistas críticos) e consequente necessidade de encarar frontalmente o fenómeno migratório;
· o da salvaguarda do Estado Social e consequente necessidade de criar mais riqueza perante a agressividade competitiva do imperialismo chinês e a crescente flexibilidade económica e capacidade tecnológica dos EUA;
· o de coexistências cada vez mais difíceis no interior de um espaço empurrado para um crescente alargamento sem o consequente comprometimento numa salutar internalização das diversidades em presença (designadamente em termos de níveis comparados de riqueza e com a Política de Coesão a ser questionada em crescendo) e em esforços sérios de aprofundamento de mecanismos substantivos e funcionais capazes de conferir condições de coerência e dinâmica ao todo.
No que respeita a este último plano, é de referir ainda que o relatório recentemente divulgado por Enrico Letta e o trabalho que vem sendo levado a cabo por Mario Draghi terão de merecer da nossa parte uma especial atenção, quer pela sua importância intrínseca quer pelo potencial das sugestões e propostas neles contidas.
No tocante às figuras, e sendo telegráfico, julgo que as mesmas elucidam o essencial da presente encruzilhada europeia:
· um Macron que se apresenta senhor de uma leitura tendencialmente correta do que está em causa mas cujos excessos de voluntarismo e empertigamento franco-francês (e inerente falta de moral europeia) deixam a desejar e tendem a tornar limitada a sua força de atração e arrastamento;
· uma Ursula que já não disfarça a sua ambição pessoal (admitindo a sua inteira disponibilidade para negociar com alguma extrema-direita europeia) e a sua abertura a tudo quanto lhe possa garantir a sobrevivência no lugar que ocupa, ao mesmo tempo que o exerceu no quadro de uma lógica de obediência cega aos ditames do bunker que estruturou em seu redor na Comissão e de princípios sempre prontos a serem ultrapassados pela dura realidade (veja-se o que fez com e do Green Deal ou a Política de Concorrência, o modo como geriu o dossiê ucraniano e o que se prepara para fazer em termos de desmantelamento da Política de Coesão);
· uma Meloni que se vai procurando assumir como o liderante “polícia bom” dos críticos da União, num processo de normalização mais cínico do que sincero e largamente forçado pelas suas próprias contradições e limitações associadas à situação nacional interna;
· uma Le Pen que prossegue o seu caminho de liderante “polícia mau” dos críticos da União, num processo focado num gradual desgaste até que eventuais dados exógenos (Trump e/ou Putin) lhe venham reforçar as possibilidades de um ataque soberanista mais destrutivo.
Sendo, por fim, que todos os demais (designadamente os socialistas, como sobretudo Olaf Scholz e Nicolas Schmit, mas também Pedro Sánchez e António Costa ou Mette Frederiksen e os restantes nórdicos dessa área política) não passam de elementos constitutivos do triste deserto de elites europeias e da consequente ausência de uma alternativa credível de liderança e reação estratégica.
(Nicolas Vadot, http://www.levif.be)
No tocante aos países, e continuando a ser telegráfico, sintetizaria afirmando que estes se mostram cada vez mais imbuídos de um absurdamente míope chacun pour soi que tanto contribui para delapidar qualquer perspetiva de trabalho conjunto produtivo em nome de uma construção maior.
Mais concretamente:
· a Alemanha atravessa uma fase de inequívoca perturbação (ou mesmo desorientação), tendo vindo a perder o seu estatuto de motor do crescimento europeu e estando confrontada com uma complexa situação política interna e uma liderança incompreensivelmente flácida que a vão tornando uma potência cada vez menos relevante no atual contexto económico e geopolítico global (apesar da atenuante decorrente do modo positivo como conseguiu enfrentar a dependência energética da Rússia herdada de Merkel e a urgência de implementar um plano de rearmamento imposto pelo recrudescimento da ameaça russa);
· a Polónia e a Hungria constituíram uma enorme dor de cabeça para a Comissão Europeia em exercício por via dos atropelos ao Estado de direito em que os seus responsáveis se foram especializando e de contenciosos (com suspensão de recebimento de fundos estruturais) que se arrastaram em termos exasperantes, tendo aparentemente a mudança de governo na Polónia (veremos se é para durar, já que as eleições locais voltaram a trazer o PiS à tona!) deixado Orbán mais sozinho na sua saga antieuropeia e pró-russa acompanhada de elementos pouco recomendáveis de nepotismo e corrupção (matérias em que importaria perceber-se mais claramente o que leva os grandes grupos políticos e as principais instituições comunitárias a pactuarem com a minagem de valores europeus e a permanente provocação interna despudoradamente protagonizada pelo presidente húngaro, a clássica questão das democracias e do seu esboroamento através da ação de inimigos internos tolerados);
· por fim, a consideração amalgamada de todos os outros, uns enredados nos seus compreensíveis medos provenientes da sua proximidade geográfica ao “urso russo”, outros a braços com o poder efetivo entretanto por lá alcançado pelas forças radicais e soberanistas ou com a necessidade de as conter, alguns tateando a oportunidade de transformação da Europa num projeto estritamente liberal (no pior sentido da palavra) e de rotura (mais violenta ou menos) em relação ao que foi construído durante décadas, alguns mais debruçados sobre o próprio umbigo dos seus egoísmos nacionais, todos manifestando, objetivamente, um estranhamente raro e quase completo desinteresse em serem parte de uma redefinição e operacionalização dirigida ao que deveria ser o seu maior desiderato, o de uma União mais forte e mais solidária.
(Nicolas Vadot, http://www.levif.be)
E assim vamos a um mês de umas Europeias que não pareçam suscetíveis de aportar sinais de esperança no sentido de uma qualquer inversão dos impasses, riscos e perigos reais que marcam o atual e deprimente estado de coisas. Remeto os leitores para uma observação da vinheta de abertura deste post, publicada para servir de ilustração a uma pertinente flor de estilo de Lucía Lijtmaer no “El País” de hoje: “Se a Europa fosse uma catedral”...
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