(O trágico clima de desconfiança e tiro ao boneco que se vive no atual momento político nacional antecipa o pior em termos de eleições europeias. A probabilidade dessas eleições passarem completamente ao lado das questões europeias que interessa verdadeiramente tratar é muito alta. O governo de Montenegro parece ter descido à terra confrontando-se com as suas próprias limitações, a magia do seu cenário macroeconómico esfumou-se rapidamente e a decisão errada de ter assentado baterias pressionando o Partido Socialista e deixando o Chega à solta para reclamar tudo e o seu contrário vai transformar o restante 2024 num inferno. Dificilmente irá falar-se de questões europeias. Por isso, já algo agoniado com tanta parvoíce mediática, entrego-me à minha tarefa de sistematizar contributos que têm emergido na imprensa europeia, proporcionando alguma dignidade às eleições de junho próximo que estão aí à porta. Periféricos e entusiastas das benesses dos Fundos Europeus parecemos no debate político pertencer a um outro mundo, como se a Europa tivesse de pagar a estes irredutíveis tugas para nos manter entretidos com as nossas minudências políticas. Trago hoje para a reflexão um contributo público do Diretor Executivo do Eurofund, European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, agência europeia tripartida com intervenção no mundo do trabalho e do emprego, de cujas publicações já por repetidas vezes fiz referência neste blogue. Claro que não podemos deixar de contextualizar as posições vindas deste tipo de agências, interessadas em última instância em valorizar a sua própria intervenção, nem sempre com a capacidade crítica desejável. Mas o texto do búlgaro Ivailo Kalfin merece leitura e comentário.)
A participação do Diretor Executivo da Eurofund no debate preparatório das eleições de junho está organizada sob a forma de dez razões para votar. Destas dez razões, cinco correspondem a iniciativas europeias consideradas positivas e outras cinco suscitam a necessidade de responder a desafios já identificados, para cuja resposta o pronunciamento cidadão é crucial.
As cinco realizações que Kalfin elenca como positivas são as seguintes:
· O instrumento SURE que tornou possível a mitigação dos riscos do desemprego em plena pandemia permitiu segundo Kalfin apoiar 31,5 milhões de trabalhadores e 2,5 milhões de empresas durante o confinamento, o que permitiu em confronto com a trágica austeridade do pós-crise de 2007-2008 a manutenção de níveis elevados de emprego e a rápida recuperação após a saída do confinamento; a mediatização das políticas nacionais terá provavelmente ocultado a existência deste instrumento comunitário;
· A diretiva de 2022 sobre o salário mínimo permite a adaptação às realidades nacionais e assegura um quadro regulamentar mínimo à proteção remuneratória do trabalho por toda a União, embora outra bem diferente seja a permanência de gaps salariais que representam uma enorme ameaça à retenção dos talentos jovens nos países menos desenvolvidos como Portugal;
· A diretiva sobre as novas plataformas de trabalho digital constitui provavelmente a matéria de mais lenta transposição para as legislações nacionais, veja-se o que se passa em Portugal, mas oferece aos sindicatos um campo interessante para se reinventarem e mitigarem os efeitos mais perniciosos do seu tradicionalismo de intervenção, em parte responsável pela queda continuada das taxas de sindicalização (ver post anterior sobre esta matéria);
· A diretiva de 2023 relativa à transparência das remunerações enfrenta o importante constrangimento dos gaps remuneratórios, particularmente entre homens e mulheres para as mesmas qualificações, embora proporcione às legislações nacionais um vasto campo de progressão social na correção de uma injustiça que continua a penalizar a participação das mulheres na vida ativa;
· Finalmente, a matéria do diálogo social, vulgo concertação social, é provavelmente aquela em que os avanços concretos são mais modestos, já que o estímulo à participação dos parceiros sociais conduz frequentemente a uma participação demasiado formal (veja-se o caso do PRR em Portugal) e não tanto à valorização do que penso ser um dos principais fatores diferenciadores do modelo social europeu.
Estes cinco tipos de iniciativas comunitárias não podem ser ignorados, mas é altamente discutível que os cidadãos nacionais as perspetivem enquanto tais. Algumas das suas manifestações perdem-se no exercício menos transparente das políticas nacionais e isso prejudica obviamente a notoriedade do que vai sendo conquistado a nível europeu. A publicitação das iniciativas europeias é algo que não pode limitar-se à política de publicidade das placas e outros avisos. Exigiria a meu ver um outro contributo das políticas nacionais.
As restantes cinco razões para votar em junho próximo são associadas pelo Diretor do Eurofund a um conjunto de desafios para os quais a força da participação cidadão é crucial, não podendo limitar-se à criatividade dos Diretórios europeus. Analisemos os desafios que estimularão segundo Kalfin a participação eleitoral:
- O tema da qualidade do emprego no quadro das transformações dos processos de trabalho, incluindo a emergência do digital e a adaptação ao instrumento da inteligência artificial, exige condições de proteção que a União deve promover, como complemento indispensável do seu modelo social;
- A questão da habitação e do “social care” é talvez a dimensão que mais preocupa os Europeus em geral e os jovens em particular, sobre a qual a ação dos governos nacionais parece não ser suficiente, sobretudo do ponto de vista do financiamento de tão importante massa de investimento que é necessário assegurar;
- A dimensão da desigualdade, não só do ponto de vista da distribuição do rendimento, mas igualmente na perspetiva do acesso aos serviços públicos emerge como algo de indissociável do desafio anterior;
- Assegurar que a transição climática seja concretizada não penalizando os já penalizados e desfavorecidos setores da sociedade é claramente uma questão europeia e não basta a retórica de que o discurso europeu é o mais elaborado;
- E, finalmente, o restabelecimento da confiança nas instituições democráticas europeias é em si próprio um desafio enorme, com profundas implicações no funcionamento da burocracia europeia.
Todas estas matérias, de êxito no que já foi feito e de premência do que há para fazer, atravessarão as eleições europeias. Existe uma vasta margem de diversidade no suporte político dos apoios a uma agenda desta natureza. O elemento de convergência necessária consistirá em barrar o caminho às forças políticas que atuam como cavalos de Troia no interior da União e que pretendem ter uma posição de peso no Parlamento Europeu.
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