domingo, 26 de maio de 2024

PEGADA DIGITAL E OUTRAS COISAS MAIS

 

(Que me desculpem os leitores menos interessados nas questões internacionais e mais vidrados pelos meandros da política nacional, mas falta-me pachorra para comentar as peripécias da Temido, do Bugalho e personagens afins, sondagens, golpes de rins da política nacional, direcionamento de classe das medidas mais recentes do governo de Montenegro. Pode ser que a seu tempo ganhe endurance para tais comentários, mas por agora vou refugiar-me em questões de maior significado do que as limitações do burgo e se houve semana em que tais estímulos abundaram e se encavalitaram uns nos outros foi inequivocamente a que passou. Não tenho a certeza de que a opinião pública portuguesa tenha entendido bem o significado da decisão do Tribunal Penal Internacional de acusar e solicitar a detenção de Benjamin Netanyahu e não me venham dizer que os juízes do TPI são anti-semitas. É óbvio que o Tribunal pode ter cedido a um último passo para a irrelevância, sobretudo se a sentença não tiver qualquer sequência ou repercussão política. Mas que a decisão é uma verdadeira bomba na cena política internacional disso não tenho dúvidas, mostrando quanto a personagem do primeiro-ministro israelita pode ser letal e, para mal dos nossos pecados e infortúnios, penso que o último a provar desse veneno vai ser o próprio Joe Biden, que não tem feito o que se lhe exigia para se libertar do fardo de apoiar personagem tão sinistra. Vou, entretanto, continuar a seguir com atenção os difíceis caminhos da transição das economias avançadas para uma economia e sociedade mais verdes, mais descarbonizadas e mais conscientes do que tem de mudar em termos de abordagem ao que o nosso modelo económico tem representado para o agravamento da trajetória climática. E, fiel ao meu velho argumento de que a perceção real das pessoas comuns sobre a degradação das condições climáticas não converge com a dimensão efetiva dos problemas e das suas causas, vou hoje insistir numa das contradições mais evidentes que acompanha aquela inconsistência de perceções e de realidade. Chamo-lhe à falta de melhor a pegada digital.)

Sabemos que a transformação ou revolução digital constitui um dos grandes esteios do tecno-otimismo que, regra geral, se contrapõe ao pessimismo tecnológico com muitas faces – as ameaças sobre o emprego, a perda da privacidade, os efeitos anémicos sobre o crescimento, o favorecimento dos poderes concentracionários, apenas para falar nas faces mais conhecidas. Nesse contexto de tecno-otimismo, os rumos do crescimento económico parecem indissociavelmente ligados à transformação digital e à sua regulação. Mas em todo o documento que versa sobre estratégia para o futuro, sobretudo nos cardápios e brochuras europeias, a transição digital não vem só, dir-se-ia que o tecno-otimismo tem uma outra frente e essa é a da transição energética e climática. O risco maior desta interpretação é o cidadão comum criar a perceção de que temos duas frentes convergentes para gerir e antecipar o nosso futuro. Deveríamos, assim, considerar que as transformações digital e energética são duas frentes de via larga para o futuro necessário. Mas isso equivale a ignorar as possíveis contradições existentes entre as duas frentes.

É neste campo que insiro aquilo que chamo a pegada digital.

De que é que se trata?

O Diário de Notícias de hoje coloca bem o dedo na ferida e presta um bom serviço público para a construção de uma opinião pública melhor-formada sobre esta matéria: “Ao enviar um e-mail ou uma fotografia estamos a ativar dezenas de data centers, que consomem quantidades enormes de energia e emitem CO2. O mundo digital, no seu todo, é responsável por 3% das emissões e o 4º maior consumidor de energia a seguir à China, EUA e Índia. A Inteligência Artificial só veio agravar o cenário”.

É disto que se trata na pegada digital. A ilusão de que a imaterialidade do digital o liberta da pressão para a descarbonização é dupla: primeiro, a imaterialidade pressupõe uma poderosa infraestrutura; segundo, essa infraestrutura é largamente emissora e está ela própria sujeita ao desafio da descarbonização. Esta interpretação mostra como a transição energética é bem mais complexa na prática, das transformações efetivas do que na retórica das brochuras e dos objetivos-ambição. Por outras palavras, as escolhas prolongam-se economia digital adentro, adensando a complexidade da transição e, em meu entender, refreando por essa via o tecno-otimismo alicerçado nas virtualidades do digital. Que existem, é óbvio, mas que não estão libertas das escolhas da descarbonização. Quando se discutirem data centers em Portugal talvez seja conveniente ter esta notícia do Diário de Notícias à mão.

 

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