segunda-feira, 31 de março de 2025

TUDO NA MESMA COMO A LESMA

 

Os portugueses estão dominantemente desligados da política. É aliás impressionante andar pelas ruas ou estacionar num café e ouvir o que as pessoas dizem quando impelidas por alguém a pronunciar-se sobre a matéria, um exercício que tenho realizado amiúde e em diferentes circunstâncias. Daqui que retire a conclusão óbvia de que pouco ou nada irá modificar-se ou ser surpreendente – ou seja, que vencerá o status quo ou a pura lógica do mais fácil – nas próximas eleições legislativas ou nas presidenciais do início do ano que vem.


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Neste quadro, tanto faz que Montenegro seja considerado maioritariamente culpado pela crise política ou que tenha feito parecer favorável à empresa que lhe forneceu betão para a casa de Espinho, porque os cidadãos desligados assim se manterão impavidamente dispostos a não irem às urnas, a votarem em protesto (Chega à cabeça) ou a colocarem a cruzinha no atual chefe de Governo que ainda lá está há pouco, que até está a distribuir algumas benesses e a fazer poucos males ou que, coitado, tem direito a uma bela casa de família e a assegurar seu enquadramento profissional e o futuro dos filhos. Ademais, porque também Pedro Nuno Santos poderá insistir em não largar o caso Spinumviva ou em acusar o Governo de estar a destruir o SNS e de não ter ideias para o País que os cidadãos desligados assim se manterão impavidamente centrados em vagos e criticáveis episódios governativos de que foi protagonista ou da imagem autoritária e impositiva que parece fazer passar (Lili Caneças explicou-o de forma quase lapidar).

 

De modo semelhante, e com todas as diferenças (que são algumas), não interessará muito aos cidadãos que o Almirante seja demagógico e vazio (não votem em mim como salvador da Pátria, não temos de ser pobres, precisamos de prosperidade, liderança e estratégia) porque, quer pela simplificada construção de imagem que garantiu aquando do processo de vacinação quer pela incipiência gritante das alternativas – já para não referir o seu aparente estatuto de “não político” e mesmo sem que algumas Teresas Violantes o venham anunciar como um “líder mobilizador pela positiva” –, ele obterá inequívoco apoio de uma significativa franja dos eleitores e fará da campanha de janeiro de 2026 um passeio traduzido num mero cumprimento do calendário que o levará até Belém.

 

E assim estamos. Algum mal nisso? Sim, algum, embora a coisa pudesse ser pior se um espaço efetivo se abrisse à aproximação da extrema-direita ao poder (Chega ou Passos com Chega), isto na medida em que Montenegro tem os seus defeitos bem à vista mas não parece propenso a abdicar do “não é não” e na medida em que o Almirante teve farda mas não passa de um mero deslumbrado que respeitará as regras democráticas e que não irá fazer grande mossa ao País. Qual é, portanto, o eventual problema? Pois o problema, que não é pequeno, decorre da apatia revelada pelos portugueses e das suas consequências, apatia que os leva a dissociarem-se crescentemente das questões sociais e políticas de maior incidência e impacto coletivo e a privilegiarem um desesperante individualismo e aflitivos graus de alienação – do que, digamo-lo com frontalidade, nada de minimamente auspicioso pode ser expectável numa perspetiva que vise horizontes de um outro futuro...

A TURQUIA DE TODAS AS CONTRADIÇÕES

 


(As minhas impressões e evidências da Turquia limitam-se a uma viagem de cinco dias apenas a Istambul, aliás objeto de reflexões neste blogue, e por isso são coisa pouca para entender a força impressionante das manifestações contra a detenção mais ou menos manhosa e exigindo a sua libertação do adversário de Erdogan, o presidente da Câmara de Istambul, Ekrem Imamoglu. Quem conhece a Turquia com uma outra amplitude de referências diz-me que existe uma enorme diferença entre, por um lado, o autêntico cadinho urbano que Istambul representa e as outras cidades turcas e, por outro lado, entre a Turquia urbana mais laicizada e a Turquia mais tradicionalista e rural, ainda fortemente dominada. Embora sem existir uma correlação perfeita entre estas várias Turquias e a massa popular que tem sustentado o poder de Erdogan, não será por acaso que Ekrem Imamoglu teve já duas vitórias em Istambul nas eleições municipais e é nessa base que se perfilou como candidato suscetível de derrotar Erdogan em eleições livres, acaso elas venham a existir e das mesmas o candidato não seja artificialmente afastado. Como referi nessas crónicas de viagem, por exemplo aqui, achei um verdadeiro espanto de preservação necessária que em Istambul coexistissem ainda os símbolos do laicismo urbano mais arrojado e o tradicionalismo mais ou menos fundamentalista, de que as chamadas sonoras para a mesquita no meio de toda a animação urbana continuam a ser um símbolo representativo. As raparigas e mulheres de burka e de negro carregado passeiam na rua misturadas com a moda de vestuário mais ousado e de afirmação do corpo feminino e foi essa coexistência que me agradou tanto em Istambul, que gostaria ainda de revisitar para uma exploração menos domesticada pelo organizador da viagem. Mas o personagem Erdogan é bem o símbolo das contradições internas da Turquia, mas também do lugar contraditório que ela representa para a União Europeia, Europa em geral e obviamente para a NATO.)

As características autoritárias do modelo de governação e da própria personalidade de Erdogan são passíveis de interpretações não uniformes quanto à sua sustentação. Por um lado, a criatividade e a força de mudança que se respira em Istambul, e imagino que também na restante Turquia urbana e cosmopolita, conviverão sempre mal com um estilo como o de Erdogan e apoiantes mais próximos. A vitória de Imamoglu em Istambul e a força das manifestações dos últimos dias expressam bem essa condição. Mas, por outro lado, o estilo e o modelo de governação de Erdogan revelaram-se ajustados à transição e gestão dos modelos das várias Turquias, assegurando designadamente à Europa um tampão face ao islamismo.

Porém, a evolução acelerada dos últimos acontecimentos mundiais constitui um enorme desafio à sustentação do poder de Erdogan. O tempo passa depressa e já lá vai no passado (2015) o acordo de Erdogan com Angela Merkel e Bruxelas para a Turquia acolher uma massa de refugiados e evitar a sua entrada na Alemanha e no território da União. Desde esse acordo, há muita coisa a acontecer. Desde logo, a NATO atravessa uma convulsão potencial com a posição bizarra e também perigosa dos EUA de Trump e não esqueçamos que a integração da Turquia na NATO representou uma outra oportunidade de tampão, neste caso de tampão face à influência soviética. Aliás, com uma força militar que é a mais importante a seguir aos EUA, o que diz bem do seu papel. Ora tudo está mudado e abre-se um novo espaço que equivalerá a reequacionar o papel da Turquia na própria NATO e na sua convulsão interna. A outro nível, a Turquia de Erdogan assumiu-se como um ator principal na Síria, apoiando o governo agora em funções e reorganizando o espectro de influências naquele território.

Dos últimos desenvolvimentos, o que me inspira mais interrogação sobretudo por não ter informação suficiente para o compreender plenamente, foi o que se passou em fins de fevereiro de 2025: o líder curdo Abdullah Öcalan, preso na Turquia, fez um apelo público para a dissolução do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), circunstância que a verificar-se representaria para Erdogan uma enorme prova de poder de dissuasão. Não sei se esta significativa alteração tem alguma correspondência com os acontecimentos observados na Síria e com a quebra de influência curda nesse novo xadrez, ainda longe de estar estabilizado.

Resumindo, é natural que o nosso espanto pela força das manifestações de Istambul e outras cidades turcas a favor da libertação de Imamoglu esteja ao nível do nosso apreço pelos movimentos pró-liberdade de Hong-Kong, Geórgia, Arménia e outros. Afinal, quando a liberdade está em recessão é necessário defendê-la com toda a energia. Mas será necessário estar atento ao estado de evolução das contradições internas e do papel da Turquia no mundo que irá observar-se neste turbilhão de mundo em que nos encontramos. Não é apenas uma Turquia laica, moderna e marcadamente urbana que está em ebulição. É toda uma outra sociedade que se encontra em transição.

domingo, 30 de março de 2025

RELEMBRANDO HANNAH ARENDT, SEMPRE

 


(A ideia de que a sociedade americana foi sempre um oásis de liberdades é algo peregrina e ignora, por exemplo, os tempos do Macartismo, em que a privação dessas liberdades atingiu muita gente. À boleia de Nicholas Gruen, que edita um excelente substack, é possível relembrar palavras duras de Hannah Arendt sobre esse período. Arendt e o seu marido Heinrich Blüncher tinham obtido a nacionalidade americana, ela em dezembro de 1951 e ele no início de 1952, pelo que os seus pronunciamentos sobre as trevas do macartismo implicavam risco pessoas, já que a possibilidade de retirada da nacionalidade era real e outros sentiram-no na pele quando se pronunciaram sobre a privação de liberdades fundamentais. As passagens que Gruen identifica como pronunciamentos claros de Arendt contra a situação que se vivia então na sociedade americana provêm de diferentes fontes, uma das quais uma carta pública da ensaísta e jornalista ao filósofo Karl Jaspers. São palavras duras que adquirem todo um outro significado se as contextualizarmos à luz da experiência de Arendt com o fascismo.)

Comecemos pelo excerto da carta a Karl Jaspers: 

Pode ver até que ponto a desintegração chegou e com essa velocidade de cortar a respiração ela aconteceu e até agora com muito pouca resistência? Toda a indústria do entretenimento e em menor extensão as escolas, os liceus e as universidades foram arrastadas para isso. Em todos os domínios acontece sem uso da força e sem qualquer terror. E ainda assim aprofunda o seu caminho de modo cada vez mais profundo na sociedade.  Estão a introduzir os métodos policiais na vida social normal sem exceção, e identificam nomes. Fazem agentes policiais deles próprios depois do facto consumado. Deste modo, o sistema compulsivo está a ser integrado na sociedade”.

Palavras duras, mas sábias.

No âmbito de um outro ensaio, “Ex-communists”, Hannah Arendt destaca o caráter fundamental do direito à dissidência:

O direito à dissidência pertence à matéria viva como o da aprovação. Qualquer tentativa para limitar a dissidência e impor uma versão da verdade da opinião americana destruirá a democracia americana, não a salvará. A tendência para punir o discurso subversivo constitui apenas uma modalidade de métodos da polícia e apenas da polícia”.

A analogia com a descabelada tentativa em curso na sociedade americana de atacar e criminalizar a dissidência é flagrante.

O problema mais complicado resulta do facto de escassearem na sociedade americana personalidades com o substrato de experiência e só um larguíssimo ressurgimento desse espírito será capaz de contrariar a deriva em curso.

sábado, 29 de março de 2025

AÍ ESTÃO AS ALELUIAS E O VERDE DOS CARVALHOS

 



(A primavera resolveu finalmente os problemas de arranque de motores e aqui temos alguns dias para nos alertar que houve mudança no calendário, mesmo que provavelmente por pouco tempo. Mas aí está criada a oportunidade certa para verificar se as aleluias estão em linha com a proximidade da Páscoa e se o verde exuberante dos carvalhos irrompeu com a força que a entrada por abril costuma nos oferecer. Seixas está por estes dias “rica e preciosa” como dizem os vizinhos espanhóis e galegos que continuam praticamente a monopolizar a feira e a proporcionar às esplanadas aquele chilrear urbano que lhes é muito peculiar, cada vez mais acompanhados por uma cerveja que ela própria é cada vez mais a 1906, reflexo da procura vizinha. Enquanto me atualizo com as leituras do New York Times e mergulho no modo como a disrupção de Trump e companhia está a ser vista e classificada por essa administração de elite ranhosa e de mau feitio, não consigo abstrair do que os Ucranianos continuam a viver por estes dias, reféns de uma mediação complacente dos EUA para com a perfídia de Putin e seus negociadores. O limbo de uma negociação para tréguas no conflito em que os Ucranianos antecipam que serão penalizados, beneficiando o infrator, mostra com clareza como a mediação americana é complacente e apenas determinada pela vontade de Trump em proclamar publicamente para as suas televisões preferidas a suspensão das hostilidades. Putin enuncia sistematicamente novas condições, testando o mediador, mas ao tempo bajulando-o e oferecendo-lhe argumentos para o show televisivo de como foi prometido a paz está a ser construída. Afastada das negociações na Arábia Saudita a Europa, mais propriamente o eixo Paris-Londres esbraceja e faz toda a série de piruetas para que Zelensky não se sinta desprotegido, melhor dizendo, mais desprotegido do que efetivamente está..)

Entretanto, a complacência americana reflete cada vez mais uma vontade política de agradar a Putin e apostaria que por aquelas cabeças, russas e americanas, já terá passado, senão mesmo verbalizada, a ideia de poder substituir Zelensky por um lacaio qualquer, com maior predisposição para aceitar perdas de território.

O que é curioso é que têm sido propostas por alguma inteligência americana abordagens concretas para forçar a Rússia a uma maior rapidez de compromissos com a suspensão das hostilidades, dissuadindo Putin e os negociador de multiplicar as manobras dilatórias, que visam apenas ir recompondo a situação no terreno e vergando os Ucranianos a uma maior cedência de território.

É este o caso de uma proposta publicamente apresentada no New York Times por dois economistas da academia americana, Glenn Hubbard que já pertenceu ao Council of Economic Advisors e é professor na Universidade de Colúmbia e Catherine Wolfram que já trabalhou no Departamento do Tesouro americano e é professora na Sloan School of Management do MIT. A proposta é muito concreta e envolve uma modalidade avançada de sanções à Rússia, neste caso sancionando indivíduos e empresas em qualquer país que estejam envolvidos no comércio de petróleo e gás russos. A possibilidade de evitar estas sanções seria garantida com o pagamento ao Tesouro americano de uma dada importância por navio e transporte de petróleo e gás, valor que aumentaria a partir de valores baixos enquanto o acordo de paz não fosse consentido pela administração russa. A proposta dos dois economistas é que, na hipótese de recusa de pagamento por parte da Rússia, a sanção passaria a recair no proprietário do navio, empresa seguradora ou entidade compradora.

Os autores da proposta consideram que a modalidade de sanções é de uma extrema eficácia, já que poderia atingir países como a China e a Índia que se têm recusado a sancionar o petróleo e o gás russo, continuando a comerciar abundantemente com as empresas russas.

Como sabemos a exportação de petróleo e gás continua a ser a principal fonte de financiamento da guerra por parte das autoridades russa, pelo que esta modalidade de sanções, com garantia segura de que os americanos a podem monitorizar com facilidade, atingiria o coração da economia de guerra russa.

Mas a proposta parte, em meu entender, de um pressuposto errado. A complacência da administração Trump para com Putin e seu entorno imediato é real, considerando que o tempo que demorará a obter de Putin a suspensão das hostilidades mesmo que à custa dos interesses centrais da Ucrânia, é uma questão manejável. Se assim não fosse, as manobras dilatórias praticadas por Putin já teriam sido objeto de condenação mais ríspida. O poder absoluto de Putin continua a ser uma espécie de inveja obsessiva por parte de Trump. Afinal, todo o comportamento que vai sendo descrito aponta nesse sentido, numa espécie de emulação mimética de procura do seu próprio poder absoluto.

Os Ucranianos estão feitos e não apenas eles.

sexta-feira, 28 de março de 2025

QUANDO CHEGAMOS À MADEIRA?

Susana Peralta (SP) é uma economista da nossa praça que tem vindo a ganhar notoriedade pública crescente por via de intervenções bastante assíduas na comunicação social falada ou escrita. Não a conheço de todo e, devo confessá-lo, algumas das suas aparições em eventos em que eu também participei deixavam-me algumas dúvidas, quiçá injustificadas, quanto à seriedade e robustez do seu trabalho, como foi o caso de uma situação já distante em que se discutiam as questões regionais e ela me pareceu mais do tipo que aqui a Norte costumamos apelidar de "espirra-canivetes”. O tempo e as suas intervenções em vários momentos foram-me demonstrando quanto as primeiras impressões são perigosas por excessivamente gratuitas e objetivamente pouco fundamentadas (mesmo apesar de o meu “cheiro” raramente me enganar, digo eu). E assim passei a apreciar SP, quer pela sua dominante lucidez analítica quer pela corajosa frontalidade que tem vindo a revelar em várias tomadas de posição político-económicas. Vem toda esta lengalenga a propósito da oportunidade que SP inocentemente me concedeu com a publicação de um artigo interessante e importante na sua coluna do “Público” desta Sexta-Feira (“Paraíso fiscal, inferno democrático”); não que tal já não pudesse ter ocorrido com outros mas porque a profunda eficácia deste a tal me impeliu de modo desenfreado.

 

O tema, especialmente tempestivo, é o da Zona Franca da Madeira (ZFM). E a síntese do seu conteúdo pela própria diz quase tudo: “O embuste da Zona Franca da Madeira não se explica por uma ingenuidade enternecedora dos responsáveis políticos da região, mas por uma promiscuidade de interesses apoteótica”. O historial que nos deixa é preciso, desde a sua criação em 1980 até à atualidade, passando pelo facto de a mesma se ter tornado num dos primeiros paraísos fiscais sujeitos aos chamados requisitos de substância (quer no âmbito dos condicionalismos resultantes das negociações de adesão de Portugal à CEE, quer na sequência de subsequentes imposições da Comissão Europeia, quer no quadro da exigência por parte da Troika que nos tutelou de que “as empresas sediadas na ZFM contribuíssem efetivamente para a economia regional, criando postos de trabalho”). Assentando a sua original contribuição num excelente artigo, assinado em coautoria e resultante de uma investigação que se debruçou sobre o mercado de trabalho na ZFM (de acordo com a Troika, “o montante de lucros que as empresas podiam declarar na ZFM dependia do número de trabalhadores, para garantir que fossem gerados na região”), SP resume lapidarmente o essencial do output da pesquisa que conjuntamente empreendeu, quer no tocante ao período anterior à reforma de 2012 quer quanto ao período posterior, matéria chocante para que remeto o leitor que de tal se queira informar.

 

Concluo com mais três dados factualmente relevantes que SP nos fornece. Cito a própria:

· Em janeiro, o Tribunal de Justiça da União Europeia negou o recurso interposto pela Região Autónoma. Foi a última peripécia da longa contenda judicial que opõe o governo regional às instâncias europeias devido à má aplicação da reforma de 2012, não só na falta de cumprimento das regras relativas ao emprego, que a nossa investigação analisa em detalhe, como na aplicação da simpática taxa de IRC a lucros oriundos do estrangeiro, quando deviam ser gerados na região. A Comissão Europeia começou a investigar em 2018 e decidiu, em 2020, que o Governo português devia exigir às empresas os benefícios de que se apropriaram ilegalmente, num montante total de mil milhões de euros. Depois, começou a saga judicial.”

·  A renovação [da gestão da ZFM pelo Grupo Pestana, que durou 30 anos e foi interrompida em 2021] de 2017 foi decidida pelo Governo de Miguel Albuquerque dois meses depois de o Grupo Pestana ter comprado uma exploração hoteleira que pertencia ao presidente do governo regional e à sua esposa e enfrentava dificuldades financeiras, resolvidas com a venda. Passadas duas semanas, o hotel recebia, das mãos do Governo de Albuquerque, a menção de ‘Utilidade Turística Prévia’, que lhe dá acesso a benefícios fiscais. Esta negociata está no cerne do processo por corrupção no qual Albuquerque é arguido.”

· Em reação à decisão do Tribunal de Justiça da UE de janeiro, Miguel Albuquerque apelidou de situação absurda ‘considerar que empresas que trabalham no mercado internacional tinham de ter os postos de trabalho sediados na Madeira’. Portanto, o agora reeleito presidente do governo reconhece que a ZFM não serve para criar postos de trabalho na Madeira. Miguel Albuquerque lá saberá para que serve a ZFM.”

 

A Região Autónoma da Madeira foi a eleições no Domingo e Albuquerque quase atingiu uma maioria absoluta. Fazendo abstração da inépcia do Partido Socialista, quer proveniente do seu candidato Cafôfo quer visível na forma como a sua liderança lidou com o processo eleitoral antes e depois, o certo é que aquele vencedor foi um dos atingidos pela megaoperação policial de 24 de janeiro de 2024 (um avião da Força Aérea com 140 inspetores da Polícia Judiciária e 10 peritos da polícia científica do Continente a aterrarem no Funchal, aos quais se juntaram dezenas de inspetores da PJ locais para realizarem centenas de buscas), tendo sido então constituído arguido e ficado a aguardar até agora que alguém o chamasse para ser interrogado. Este estado deplorável da Justiça em Portugal cruza-se gritantemente com as extraordinárias e por vezes constrangedoras tropelias políticas de Albuquerque (vale praticamente tudo, dentro e fora do PSD) e com as revelações de SP que, decerto por defeito, também ajudam a evidenciar quanto a Madeira é um território democraticamente especialíssimo (e assaz estável!) dentro de um País já de si igualmente muito especial... 

(cartoons de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

AS FIGURAS DO MUÑOZ

 


(Se há zona da Cidade com a qual me identifico afetivamente é o conjunto formado pelo Carmo, Praça de Carlos Alberto, Cordoaria, edifício da Reitoria da UP, Praça Guilherme Gomes Fernandes, início de José Falcão e Rua da Fábrica. A ligação é afetiva, pois além de cinco anos no inclassificável sótão da então Faculdade de Ciências, onde funcionava a Faculdade de Economia do Porto,.a ligação vem de muito antes, já que ainda aluno de escola primária e do liceu D. Manuel II, hoje Rodrigues de Freitas, passei infindáveis dias de fim de semana no restaurante do meu avô, o prestigiado Botas, na Travessa do Carmo. Por isso, conheço bem as mesas do Avis e do Estrela, da antiga Primar e da hoje extinta pastelaria Invicta, estando hoje limitado à minha experiência de cliente da barbearia Invicta, fronteira à Igreja e Ordem do Carmo. Como sabem, a sexta-feira é a minha entrada antecipada de fim de semana, em transição não muito acelerada para a vida inativa e habituado ao princípio da manhã para começar a trabalhar dedico regra geral o princípio das manhãs de algumas sextas-feiras para incursões nessa Cidade de que sou próximo, designadamente para transformar a ainda vasta cabeleira em algo de mais apresentável. Por isso, faz parte desse ritual a minha revisitação inevitável das quatro bancadas das esculturas de Juan Muñoz no Jardim da Cordoaria e não há dia que novas interpretações essa passagem não me surjam à cabeça. Aquela atitude de distensão, despreocupação e riso das personagens ali representadas, ninguém conhece o mistério daquele riso que em alguns dias soa a algo de insolente, parece-me ser uma boa e acutilante metáfora das sensações que os tempos e acontecimentos mais recentes me suscitam. Apetece-me por vezes comungar da reação daquelas personagens notáveis que Juan Muñoz trouxe à Cidade. No mundo e no país de hoje há gente tão risível, rasteira e lamentavelmente pequenina a entrar-nos pela casa adentro nos jornais e na televisão que apetece insolentemente rir como expediente para a preservação do equilíbrio mental.)

Sou dos que penso que as esculturas de Juan Muñoz deveriam ter no Jardim da Cordoaria um outro tratamento de enquadramento. Não vou entrar, até porque não sou um estudioso nem um fundamentalismo do rigor histórico dos jardins públicos, no debate que teve o seu tempo e que foi considerado por alguns um atentado de arquitetura paisagista ao espírito romântico da Cordoaria. Cada vez tenho mais dificuldade em compreender o que é o espírito inalterável das marcas urbanas, não sou e nunca serei um patrimonialista da preservação a todo o preço, interrompendo artificialmente a passagem do tempo. Mas sou sensível ao estado larvar da degradação do espaço público e acho que a conservação, limpeza e arranjo da Cordoaria deveriam ser preocupações mais salientes do executivo municipal. A começar pelo lago.

Por tabela, o enquadramento das sugestivas esculturas de Muñoz é fortemente penalizado e dói-me que a Cidade não saiba valorizar o que é a expressão criativa de um artista como Juan Muñoz. Diria que algumas daquelas inquietantes personagens estarão a rir do estado do espaço público que passou a ser a sua morada para nosso gozo e usufruição.

O período também é mau, já que as obras do Metro do Porto continuam a ocupar o belo espaço central entre a Reitoria e o Café Piolho que, embora algo turistificado, continua a resistir. A transição da estrutura comercial de toda aquela zona que marca a minha afetividade com a Cidade também não ajuda, mas o que é espantoso é que os turistas não desarmam e conduzidos sabe-se lá por que guias e fontes de inspiração continuam a assegurar a animação necessária para que aquele espaço se mantenha minimamente vivo. Alguma reabilitação urbana vai acontecendo e passando em romagem de afetos pela Travessa do Carmo reparei que até o Botas do meu avô, mais propriamente a parte superior de habitação em que os meus avós maternos viveram tantos anos, está em reabilitação total e até com bom aspeto.

O tempo talvez não esteja para saudosismos melosos, mas antes para o riso insolente das inquietantes figuras de Muñoz.

quinta-feira, 27 de março de 2025

O EXCEDENTE E SEUS EXCESSOS

O ministro das Finanças apareceu-nos ainda mais inchado do que é costume, como bem retrata a primeira página do “Jornal de Negócios”. E a comunicação social, juntamente com alguma classe política necessitada de espaço mediático (com o pobre do president to be Marques Mendes à cabeça) logo vieram aplaudir o feito histórico do Governo e dos portugueses, já que o caso não parecia ser para menos: terceiro excedente da nossa democracia, ademais conseguido com números (saldo de 0,7% do PIB) bem acima do estimado no Orçamento e ainda em outubro passado – um embandeiramento em arco parcialmente justificado, especialmente se tivermos em conta as aflições que de há muito vinham passando as nossas contas públicas, mas também algo despropositado se sublinharmos a desconsideração assim feita à mais decisiva componente estrutural da economia portuguesa (porque não, a economia portuguesa não é agora um oásis esplendoroso e produtor de invejas por essa Europa fora, nem é verdade que o resultado anunciado por Sarmento corresponde a um indisputado “momento histórico” para a mesma).

 

Como claramente explica hoje no “Público” o jornalista Sérgio Aníbal, “são vários os fatores a contribuir para este resultado” (ver infografia abaixo). De destacar, neste plano, a muito significativa redução registada pelo investimento público (que continua a ser o maior pagador da fatura reducionista e foi também afetado pela baixa execução do PRR), a quebra na receita proveniente de fundos europeus, as poupanças em sede de consumos intermédios (o funcionamento dos serviços na berlinda) e, ainda, os impactos de uma conjuntura favorável em termos de atividade económica e mercado de trabalho (conjuntura que é, aliás, alimentada por diversos fenómenos tendencialmente desviantes em relação à desejável consolidação de uma estrutura económica capaz e duradoura) e dos marcados lucros registados pelo setor bancário (duvidosa é a robustez do modelo em que os mesmos assentam, como bem comprova a manchete do JN de hoje: “comissões pagas por clientes valem metade dos lucros da banca”).

 

Em suma: a economia portuguesa não está nos píncaros de coisa nenhuma, embora apresente indicações louváveis de uma trajetória positiva em curso nas suas contas públicas (muito tributária da ação nas Finanças de Mário Centeno, salvaguardados os exageros exponenciados por João Leão) que vai permitindo um combate paulatino a um dos seus principais flagelos (o nível de endividamento), sem prejuízo de alguns riscos no horizonte. E é este o ponto a merecer saliência objetiva – nem tanto ao mar, nem tanto à terra!



O MISTÉRIO DA FELICIDADE NÓRDICA

 


 (São várias e diversificadas as tentativas da economia para se libertar do jugo do Produto Interno Bruto, em termos absolutos ou per capita, em termos de nível ou de taxa de crescimento, como variável de medida do desenvolvimento e do desempenho dos países ao longo do tempo. O objetivo deste post não consiste em mergulhar nesse mar profundo, mas bastaria recordar as tentativas do PNUDI para impor o indicador do desenvolvimento humano e a popularidade dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) para compreender essa desesperada e muitas vezes inconsequente tentativa de ir além do produto. O Economist, que anda sempre atento a estas coisas, relembrou recentemente que o World Happiness Report (Relatório Mundial da Felicidade) 2024 acaba de ser publicado e aqui temos mais uma dessas tentativas de ir além da dimensão puramente material do desenvolvimento económico. A invocação do critério da felicidade insere-se no propósito de focar a análise na satisfação que os cidadãos declaram usufruir do desempenho económico dos respetivos países e, de certo modo, procura responder à velha interrogação de tentar explicar a razão de entre os mais desenvolvidos o consumo de antidepressivos e tranquilizantes e opioides estar a aumentar de modo muito significativo. O indicador sintético de satisfação ou felicidade resulta do tratamento de uma sondagem GALLUP a uma amostra mundial de pessoas em vários países, vale o que vale e apresenta inelutavelmente todos os enviesamentos possíveis de uma consulta por sondagem aos cidadãos de todo o mundo, designadamente os riscos dos inquiridos sobrevalorizarem ou subvalorizarem as suas realizações pessoais em termos de felicidade. Entre outras dimensões, talvez não possamos ignorar que o próprio conceito de felicidade pode ser culturalmente contextualizado. Mas o objetivo deste post não aponta para uma recensão crítica do indicador, antes pelo contrário está essencialmente interessado em destacar o lugar dianteiro que os países nórdicos ocupam no que poderíamos chamar o ranking da felicidade. Por simples curiosidade, Portugal ocupa o 60º lugar neste ranking.)

É de facto curioso que os quatro primeiros lugares do índice da felicidade sejam ocupados por países nórdicos (Finlândia, Dinamarca, Islândia e Suécia, por ordem decrescente) e a Noruega ocupa o 7º lugar da escala. Também não deixa de surpreender (vá lá saber porquê) que a Costa Rica talvez o país mais democrático da América Latina se intrometa nesta contenda, ocupando o 6º lugar antes da Noruega.

Aliás, os autores do relatório atribuem especial importância ao inesperado desempenho em termos de felicidade que os latino-americanos apresentam e explicam-no sobretudo como uma consequência do ambiente de convivialidade que os inquiridos nesses países expressam, apesar da nossa visão desses países o considerar inesperado. O número de refeições realizadas em conjunto com amigos é citado como um fator impulsionador dessa convivialidade.

Para adensar as nossas dúvidas, poderemos dizer que, aparentemente, pelo menos no ponto de vista do conhecimento que temos sobre a gente nórdica, não é intuitivo que eles sejam propriamente gente de grande convivialidade e muito expressivos nessa matéria. O que explica, por exemplo, que um povo como o finlandês, com uma geopolítica pouco recomendável nos tempos que correm, esteja no topo do indicador da felicidade?


O gráfico acima mostra a mais do que esperada correlação entre produto per capita e felicidade, mas no caso dos países nórdicos é algo mais do que essa esperada correlação que estará na base da misteriosa felicidade nórdica. O modelo escandinavo é talvez o exemplo mais bem conseguido de combinação entre rendimento elevado, natureza compreensiva da proteção social, ainda relativamente equitativo mas com recuos nessa matéria, desempenho fortemente inovador e avanços consideráveis da cultura e participação cívicas. Nesta interpretação, o mistério da felicidade nórdica emerge como o resultado natural desta combinação virtuosa, evidenciando ser o modelo de capitalismo mais avançado. Mas a razão de lhe chamar mistério prende-se com o facto da felicidade surgir neste caso ligada com comportamentos de sociabilidade que não são propriamente exuberantes. E temos assim algo de contraditório: em muitos países a felicidade estará em recuo na medida em que a sociabilidade, a convivialidade e a vida em conjunto estão a regredir significativamente, ao passo que na Escandinávia o isolamento parece não ser um fator de infelicidade.


Moral da história: vou reler um dos livros que fez a delícia da minha adolescência – o Tempo Escandinavo de José Gomes Ferreira, onde me recordo de ter lido as mais sábias vivências de alguém sobre o modo de vida e de ser dos Escandinavos.

quarta-feira, 26 de março de 2025

O MERCANTILISMO, AÍ DE NOVO

 


(Que o mundo está de pernas para o ar, já ninguém o ignora, só mesmo gente muito distraída ou então gente obcecada pelo livre-câmbio, que continua a tomar a realidade pelo mundo das suas próprias convicções, em vez de as rever face ao que se perfila diante dos nossos olhos. Sobretudo nos anos 80 e 90 do século passado, enraizou-se a ideia de que o comércio mundial era um jogo de soma positiva em que todos podiam ganhar. Claro que mesmo nesse contexto, os ideólogos do livre-câmbio sempre ignoraram que esses ganhos do jogo de soma positiva podiam ser fortemente desiguais e também que, implícitos nesses ganhos, podiam estar enraizadas dinâmicas diferenciadas de longo prazo. As vantagens comparativas de longo prazo de uma dada especialização não eram assim indiferentes à eficiência dinâmica das apostas de cada país, já que o potencial de inovação de uma dada especialização não é necessariamente uniforme. Mas de qualquer modo, esse mundo de soma positiva, mesmo que sujeito a desigualdades estruturais de longo prazo, parece estar em agonia profunda, senão mesmo destruído, com uma profunda indeterminação sobre o modelo futuro para a economia mundial. Por outras palavras, a chamada globalização neoliberal já era e existe já investigação diversificada sobre o mundo que vem aí. Esta tentativa de antecipação do futuro para fundamentar a adaptação estratégica dos países ao novo contexto global anda paredes meias com a futurologia económica e geopolítica, pelo que é saudável tentar escapar a essa tentação de fuga para a futurologia. A melhor forma de o evitar é assumir a história do tempo longo como o grande referencial do nosso pensamento, pensar com inteligência o passado para discernir o que pode ser o futuro, mesmo que estejamos em tempos de incerteza dinâmica, ou seja, o mundo da incerteza em que as probabilidades e o cálculo atuarial pouco nos podem ajudar. Economistas como Branko Milanovic estão bem apetrechados para esse exercício e será uma vez mais com recurso à sua fina intuição que abordarei o assunto, até porque está anunciada para novembro de 2025 uma nova obra do autor – The Great Global Transformation: National Market Liberalism in a Multi-polar World, a publicar pela Penguin’s/Allen Lane, que será seguramente um acontecimento editorial a marcar este ano de todas as provações.)

O exercício reflexivo que Milanovic nos propõe é curiosamente desenvolvido no âmbito de uma recensão crítica de uma obra recentemente publicada, de edição francesa da Flammarion, designada sugestivamente de “Le Monde Confisqué - Essai sur le capitalisme de la finitude (XVIᵉ - XXIᵉ siècle)”, de autoria de Arnaud Orain. As palavras “confisco” e “finitude” são cruciais para a discussão que vou tentar desenvolver.


Fiel à tradição do tempo longo, percebe-se que Orain considera que se olharmos para os últimos quatro séculos de evolução do capitalismo veremos diferentes ciclos longos e profundos ajustamentos de evolução à medida que tais períodos se sucedem. A palavra mercantilismo vem naturalmente à baila, porque precisamente o mercantilismo é a velha corrente económica que parte do princípio de que a economia mundial é um jogo de soma zero, no qual por conseguinte os ganhos de uns são inevitavelmente perdas de outros. O mercantilismo interpreta assim o capitalismo como uma forma de comércio armado ou guerreiro. Segundo Orain, o período em que nos encontramos seria uma reedição, com diferenças é óbvio, dos períodos dos séculos XVII-XVIII e de 1880 a 1945. A ideia de comércio armado ou guerreiro significa que a economia mundial se encontra em conflito permanente, em que a força das armas e de outras formas de coerção de países inspira e organiza as políticas comerciais externas dos países que procuram posicionar-se do lado dos ganhos e não do das perdas. A visão guerreira do comércio mundial implica naturalmente o controlo das condições de transporte das mercadorias, especialmente das rotas marítimas, a negação da ideia de cadeia de valor fragmentada a nível mundial, integrando verticalmente produção e comércio e a luta incessante por matérias-primas e alimentação e solo, com destaque para as infraestruturas portuárias e de entrepostos.

Convém referir que um dos aspetos não referenciados por Orain e Milanovic é o tratamento do crescimento dos serviços, em relação aos quais os contributos já aqui citados do economista Richard Baldwin (por exemplo aqui) até há pouco tempo estavam a escapar à estagnação das trocas internacionais. A imaterialidade dos serviços suscita especiais desafios ao dito comércio guerreiro ou armado e merece por isso uma discussão futura. Ou seja, podemos questionar que lugar haverá para a luta pelos mares e rotas marítimas e pela disponibilidade de solo num mundo em que a componente dos serviços se sobrepõe ou, pelo menos, mitiga a estagnação do comércio mundial de bens finais e intermédios.

Ignorando para já esta questão dos serviços, é certo que se acompanharmos de perto a evolução da política comercial externa chinesa rapidamente nos apercebemos que ela segue de perto as orientações mercantilistas. Primeiro, à sua superioridade no comércio de manufaturados rapidamente se juntou a perspetiva do controlo de rotas navais e terrestres, com por exemplo a participação na obra e no financiamento pela China de grandes infraestruturas portuárias e de entrepostos pelo mundo de influência chinesa. Segundo, as divisões entre marinha de guerra e comercial passam a ser distinções mais ténues e vários incidentes em diferentes mares e oceanos entroncam com esta proximidade.

Onde me parece que a intuição analítica de Milanovic está certa é na sua critica ao conceito de capitalismo de finitude assumida por Orain. O historiador francês invoca o conceito de finitude para explicar as razões da viragem mercantilista a que o mundo parece sucumbir. Orai explica a viragem invocando a finitude dos recursos naturais como razão fundamental para que os países tivessem compreendido que o jogo de soma positiva não é já mais possível e que no jogo de soma zero que temos de ganhar à custa de alguém. Acho plenamente que Milanovic tem razão quando afirma que não foi uma descoberta recente de que a finitude física dos recursos fez perceber que não haveria ganhos para todos, mesmo que eventualmente desiguais. De facto, a descoberta é outra e está associada à emergência da China e de todo o mundo asiático. Citemos que é mais direto e mais correto: “O crescimento da China, o novo e grande ator na cena internacional, com um sistema político distinto do Ocidente constitui um desafio hegemónico. Mantendo a globalização no modo neoliberal, o Ocidente compreendeu que isso poderia significar o eventual domínio da China. A perceção do declínio ocidental (se nada entretanto mudar) levou o Ocidente a uma posição mais radical e belicista de que o mundo é de facto visto como finito porque “se há mais para a China há menos para nós”.

Em resumo, a China não é um elefante na sala do comércio internacional apenas pela sua volumosa dimensão. É-o também porque exerce o seu domínio de parte das cadeias de valor através de um regime político que embora ofensivo dos direitos humanos lhe assegura uma outra eficácia de decisões. Penso que o papel de Deng Xiaoping na viragem económica da China deverá ser estudado com maior profundidade, tamanha foi a influência no que estamos a analisar. Entretanto, MiIanovic utiliza a categoria “Ocidente” de modo global e homogéneo, mas as mais recentes posições da administração Trump vieram mostrar que essa categoria é mais problemática do que pensávamos. O que parece evidente é que as relações entre democracia e mercado que dávamos por adquiridas estão em profunda mutação. O meu amigo galego Professor Fernando Laxe, Catedrático da Universidade da Corunha e alguém que pensa sempre com muita lucidez compreendeu bem esse problema e escreveu-o em crónica muito recomendável na Voz de Galicia, a quem vou buscar o cartoon que abre este post.

Como é típico dos ciclos longos não sabemos qual vai ser a duração deste ressurgimento do mercantilismo e das paredes meias erigidas entre belicismo comercial e militar. A Europa está sujeita a um sanduíche de rolos compressores que resultam do elefante na sala chinês e da deriva americana. Sem abandonar os esforços diplomáticos e de união possível entre os seus membros e tratando de tratar a preceito os cavalos de Troia que foram surgindo no seu interior (penso que a União Europeia vai amargar os efeitos da sua tibieza (1) em tratar a tempo as derivas antidemocráticas que se foram anunciando sem pudor), não resta senão à Europa encontrar uma resposta ao tal “capitalismo de finitude” de que falam Orain e Milanovic. Mas seguramente que não será apenas com salamaleques diplomáticos que iremos lá e isso talvez deva ser tido em conta na escolha do futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros para o governo que brotar das eleições de 18 de maio.

(1) Ver nesse sentido o excelente Tom Theuns, Protecting Democracy in Europe - Pluralism, Autocracy and the Future of the EU, Hurst, Londres, 2024

terça-feira, 25 de março de 2025

BONS RAPAZES É POUCOCHINHO!

 

O último cartaz que o “Chega” colocou nas ruas de Portugal é um sinal manifesto do que por aí vai, ou pode tender a surgir, nas cabecinhas de uma parte significativa dos nossos concidadãos. Mais até do que a associação de Montenegro a Sócrates, que tanto incomodou (e compreensivelmente) o primeiro-ministro, a questão marcante está no conteúdo subliminar centralmente visado pela mensagem pretendida: 50 anos de corrupção, leia-se, a Democracia falhou. Depois do “Limpar Portugal” e do “Vamos Fazer o Sistema Tremer”, além de outros outdoors escabrosos com que nos brindou a genialidade de André Ventura, veio agora este e logo de imediato um outro, disfarçadamente manso e a solicitar humildemente “uma oportunidade” perante os falhanços de PS e PSD que duram há 50 anos.


É assim que estamos! E não me enganarei muito, como sinceramente espero que aconteça, se formular o preocupado vaticínio de algum sucesso eleitoral para esta gente... Contra este estado de coisas, de modos diversos mas convergentes no essencial, lá vão aparecendo no espaço público certas vozes respeitáveis (vejam-se abaixo exemplos, como os de Seguro e Carneiro na área socialista, Negrão na social-democrata ou Louçã mais à esquerda). Só que o tempo que vivemos já não se compadece com a mera boa intencionalidade de “bons rapazes” como estes e outros, designadamente porque o discurso que emitem está gasto e/ou ultrapassado como elemento de convencimento para a maioria votante de hoje. Nesta perspetiva, e a meu ver, a questão que se tem de colocar, sob pena de riscos maiores como os acima prenunciados, é a seguinte: existe alguém capaz de abrir um caminho de diálogo ao centro do espetro político que possa fazer caminho, para além do desgaste dos pequenos ódios que ocupam Montenegro e Pedro Nuno?



Seria incompreensível que os próximos quase dois meses fossem ocupados com guerrilhas de alecrim e manjerona entre os ainda dois maiores partidos nacionais. Das duas, uma: ou há fundamento substantivo nas acusações a Montenegro, e ele tem de sair (necessariamente empurrado, em primeira linha, pelos seus pares partidários), ou o prolongamento do atual momento de pequenas e médias suspeições poderá acabar por favorecer a extrema-direita (embora o lado mais clubisticamente montenegrista, incluindo talvez o próprio, acredite que ganhará o plebiscito que tenta montar em torno de um misto de vitimização e eficaz marketing comunicacional). Isto também porque Pedro Nuno ainda não foi capaz (e duvido que o seja em tempo útil) de apresentar um discurso de propositura escorreito e sólido, nem parece ser dotado de condições de presença que o tornem empático e credível junto de uma parte significativa dos portugueses. Neste quadro, acrescento ainda a minha perplexidade quanto ao PSD profundo, adormecido ou inebriado à sombra do poder e de onde praticamente não aparece ninguém que fale em nome dos princípios essenciais e dos riscos potenciais que os poderão ferir ou minar a breve trecho. A situação é grave, pois, e só a política no seu sentido mais puro e duro poderá evitar derrapagens de nefastas e incalculáveis consequências – porque ainda estávamos a tempo de um “golpe de asa” (por parte de um daqueles dois líderes e com o devido respaldo por parte do respetivo opositor), tão patriótico quanto tudo indica improvável, que a enfrentasse com justeza e assim trouxesse uma nova aragem ao País...

UM TESTEMUNHO, POR CONVITE, SOBRE A MADEIRA

 


(O António Oliveira das Neves é um colega de profissão, economista andarilho do planeamento como eu e que tem uma valiosa experiência de trabalho na Região Autónoma da Madeira, bem mais alargada do que a minha. Por isso, achei que o seu testemunho escrito sobre as implicações das eleições de domingo passado deveria ser do conhecimento dos leitores deste blogue. Partilhamos o mesmo respeito pelo valor sagrado da autonomia regional e por isso gostaríamos que a Região reunisse condições para ultrapassar o bloqueamento da transição do seu modelo de desenvolvimento. Não é frequente este blogue recorrer a testemunhos por convite, mas neste caso julgo ser do interesse dos leitores tomar contacto com esta visão sobre a Região. Aqui está o texto, com agradecimentos ao AON por ter aceite partilhar a suja reflexão com os nossos leitores …)

“Esta nova maioria do PSD Madeira arrisca ampliar condições para o bloqueamento da Região, na medida em que os resultados expressivos legitimam:

# os atos que o Ministério Público investigou com abundante prova que motivou a constituição de vários arguidos, indiciados por crimes que lesam as finanças regionais e desacreditam os esforços honestos dos cidadãos;

# uma trajetória de decisões de ordenamento e desenvolvimento à revelia de instrumentos estratégicos e de regulação, afunilando um modelo de acumulação que subordina valores naturais e identitários;

# a ausência de políticas setoriais credíveis em domínios-chave para a RAM (economia e turismo, educação e formação, saúde, transportes,...) e sem protagonistas com capacidade negocial, a nível nacional e europeu;

# o caciquismo na maioria dos concelhos, com a rede das Casas do Povo, as paróquias, as IPPS e a distribuição dos subsídios agrícolas;

# as políticas sociais, que na vertente dos equipamentos para idosos são, cada vez mais, atribuídos a entidades sem orçamento para cobrir contrapartidas, dando entrada a interesses privados que adiantam, com cobertura do Orçamento e dos fundos comunitários, questionando dimensões regulamentares;

# o falhanço dos investimentos avultados na Inovação, sem retorno e desperdiçando orientações diferenciadoras constantes da RIS 3;

# o desaproveitamento dos mecanismos RUP (ZFI e CINM) na negociação séria para a atração de Investimento Direto Estrangeiro;

# a inação empresarial, sem capacidade de investimento, atuando em setores protegidos e sem contribuir para a diversificação económica e a dependência da sobre especialização do complexo turismo-imobiliário;

# a paralisia da função regulatória em diversas áreas críticas da ultraperiferia, com reforço da rede de dependências do Governo;

# a fuga de competências, desperdiçando o investimento público, das famílias e dos jovens;

# o crescimento do individualismo salve-se quem puder, num quadro de dissolução social, tão afastado das mensagens cívicas e culturais que marcaram no dealbar dos anos setenta do século XX, a geração Comércio do Funchal.

Ao longo dos 33 anos de colaboração esclarecida, com várias instâncias regionais, num esforço empenhado em apontar rumos e políticas para um salto de escala das organizações, das pessoas, do território, confesso-me derrotado.

A Madeira merece mais sendo certo que o futuro vai exigir muito mais à Região, ao Governo, às organizações e à massa crítica que resistir à tentação da saída, na margem estreita da sobrevivência, com coluna”.

A.Oliveira das Neves