(A questão da habitação tem comigo um relacionamento
estranho. Nunca foi um tema de investigação ou reflexão permanente e de vez em
quando emerge, por convite, nas minhas preocupações. Desta vez, é a
problemática das ilhas e figuras similares na cidade do Porto, a convite da
DOMUS SOCIAL para um encontro na próxima quinta-feira, no auditório do Teatro
Campo Alegre.)
ARQUIPÉLAGO é
um título sugestivo para uma sessão pública sobre o programa estratégico que a
Câmara Municipal do Porto organiza na próxima quinta-feira, 5 de julho, no
Teatro Campo Alegre. E através de um novo convite, bondoso e lisonjeiro para um
não especialista do tema, lá de novo a problemática da habitação se cruza com a
minha reflexão, desde os tempos em que, pela mão dos meus amigos Rui Oliveira,
ainda vivo e Professor Abílio Cardoso já falecido para nosso infortúnio, o tema
se cruzava com a minha reflexão sobre o território e sobre as Cidades.
O
conhecimento do Professor Abílio Cardoso na Faculdade de Engenharia do Porto
teve no CITTA e nas pessoas dos Professores Paulo Conceição e Isabel Breda Vásquez
uma continuidade e muito aprofundamento. É do CITTA (Centro de Investigação do Território,
Transportes e Ambiente) e do Instituto de Construção da FEUP a autoria do Diagnóstico
e do Programa Estratégico para as Ilhas na Cidade do Porto. É nesse âmbito que surge
o convite para uma intervenção no painel final da sessão, dedicado aos modelos
de gestão e intervenção, em companhia da sempre estimulante Professora Fernanda
Paula Oliveira da Universidade de Coimbra, com moderação do vereador do
Urbanismo da CMP Pedro Baganha.
Nesta recorrência
episódica de visão sobre o tema, é altura de novo para novas leituras, sempre
pressionado pelo tempo e pela necessidade de um rumo de intuição para discernir
o que vale a pena ler e o que deve ser considerado lixo. A intuição tem sempre
me ajudado e nestas incursões furtivas por temas que não constituem o centro
nem da prática profissional, nem da pesquisa, tenho tido excelentes encontros
num modelo de investigador acidental, farejando ideias que valem a pena
explorar e incorporar numa reflexão mais estruturada.
Neste caso,
o trabalho está facilitado pois o trabalho de base que inspira a sessão pública
é de grande qualidade e minúcia, robusto quanto baste e um excelente quadro para,
politicamente, o Executivo municipal se abalançar a uma intervenção de grande fôlego
e repercussão na Cidade.
Embora em declínio
de expressão na Cidade (indiretamente representado pelo número de situações de
desocupação, sempre superiores às ocupadas), os trabalhos do CITTA e do IC da
FEUP registam cerca de 4.900 alojamentos ocupados com estatuto de ilha ou similar
e cerca de 10.500 habitantes associados, algo correspondente a cerca de 5% do
total de alojamentos ocupados e da população residente na Cidade. Não é
realidade despicienda e quando olhamos para a sua espacialização a sua expressão
é ainda mais notória, seja nas freguesias que integram a primeira coroa em
torno do centro histórico, seja no Porto oriental com expressão nas freguesias
do Bonfim e de Campanhã, com relevo para esta última devido à concentração de
situações mais críticas e atípicas.
Para
conceber uma intervenção minimamente útil para os objetivos da sessão, que não
deslustre o convite realizado, organizei uma reflexão estruturada em três entradas
que julgo ser capaz de integrar num todo coerente.
A primeira
entrada é obviamente o valioso material da equipa coordenada pela Isabel Breda Vásquez
e pelo Paulo Conceição sobre o diagnóstico da Cidade em termos de ilhas e o
programa estratégico associado. É um trabalho de grande minúcia, envolvendo uma
inventariação rigorosa das tipologias de ilhas ainda reconhecíveis na Cidade, a
sua composição social e económica, o estado de conservação de áreas comuns, de
habitações e conexão com a Cidade, a hierarquia de situações prioritárias de intervenção,
o perfil de proprietários, custos estimados de intervenção para que o programa
não seja puro wishful thinking e o próprio
perfil de programa estratégico. Quem sou eu para me sobrepor a trabalho tão
minucioso e, pelo conhecimento que tenho dos seus coordenadores,
necessariamente rigoroso. Material de confiança, por conseguinte. Como seria fácil
de intuir, as ilhas não são apenas uma questão física e habitacional. Elas
projetam outras dimensões da Cidade: a pobreza, o ficar abaixo do limiar de
solvência das famílias, a desqualificação, o desemprego, o envelhecimento galopante,
os reduzidos raios (por questão de custo de oportunidade de deslocação e ganho
potencial) de procura de emprego. Não é percetível do estudo, qual o peso
relativo de ilhas de propriedade pública (não apenas camarárias) e de ilhas de
proprietários privados, seja de habitantes-senhorios ou de senhorios não residentes
em ilhas. Essa diferenciação não é despicienda para um programa de intervenção.
A segunda
entrada é a do modelo de Cidade em que me revejo e para o qual o programa estratégico
deve contribuir, não sendo naturalmente neutro o contributo que lhe devemos
pedir. É uma oportunidade para repensar de novo a Cidade diversa e com abertura
a diferentes modelos de justiça espacial, retomando os contributos de Jane
Jacobs que tanto marcaram a minha formação e reflexão em termos de
desenvolvimento urbano. Quando pensava que a minha fixação em Jane Jacobs era
própria de um cota fora do tempo, tive a satisfação de registar que a Town Planning Review de Março de 2017 publicou a síntese de uma valiosa Conferência
Internacional “Jane
Jacobs 100”, realizada na Universidade de Delft na Holanda em maio
de 2016 que me tinha escapado e que comemorou com um grande debate o centenário
da jornalista-economista urbana e a riqueza das suas reflexões.
Na terceira
entrada, mais focada no modelo de gestão e intervenção, procuarei refletir sobre
a relação entre o programa estratégico e a política de habitação para a Cidade
do Porto (nunca perdendo de vista a inscrição metropolitana), perseguindo o velho
problema que o planeamento enfrenta de saber o que é uma intervenção integrada e
que implicações tem a abordagem em termos de modelos de gestão e governação (de
governança melhor dizendo). Como referi anteriormente, nas Ilhas, quaisquer que
sejam as tipologias, projetam-se problemas que remetem para outras políticas e
não apenas para uma intervenção física de demolição, reabilitação, valorização
ou outra qualquer forma de intervenção. O que sabemos é que uma Cidade que se
quer projetar cosmopolita e atrativa no mundo do investimento e da atração de
talentos não pode acolher no seu seio formas de habitação não decente e indigna
de um padrão civilizacional de qualidade de vida, não perdendo e vista o nosso
baixo nível de desenvolvimento económico. Mas uma intervenção desta natureza apela
a uma integração com outras políticas que constituirá o cerne das opções de
gestão e governação. Não esquecendo anda que a Cidade atravessa uma transição
cujos contornos precisamos de conhecer melhor: a pressão do turismo e a chegada
à Cidade dos Fundos de Investimento imobiliário de cariz internacional.
Enfim, material
para outros posts, e sobretudo a esperança de que o convite tenha justificação.
P.S. Como é
costume nestas andanças, sou frequentemente surpreendido pela revisita de
coisas que escrevi e que valia a pena ter aprofundado, algo de incompatível com
o meu estatuto de investigador acidental e indisciplinado. Desta vez, ficam
alguns parágrafos que escrevera para a 1ª conferência CIHEL sobre A Cidade
Habitada, sobre a obra do sociólogo americano Robert J. Sampson. Aqui fica:
“O que é relevante anotar é que os estudos de Sampson
apontam para que a ação coletiva cívica esteja ecologicamente concentrada e
seja mais explicada pela densidade de organizações comunitárias do que por
relações sociais entre indivíduos ou de membros de organizações cívicas
tradicionais. Os elementos de pesquisa sugerem que a ação cívica coletiva não é
o mero somatório de comportamentos cívicos tradicionais. O que é importante
sobretudo em contextos de declínio
cívico individual (sublinhado meu). A capacidade de ação coletiva
sustentada é antes condicionada pela existência de uma elevada densidade de
instituições e organizações estabelecidas que podem ser apropriadas e
mobilizadas em favor de objetivos de ação coletiva.
Resumindo: os resultados da pesquisa de Sampson e o início da sua
utilização comparativa são promissores a vários níveis. A relevância das
unidades de vizinhança e de proximidade na grande Cidade vem ao encontro das
ideias originais de Jane Jacobs segundo as quais haveria um preconceito
emocional para com a concentração humana apontada à partida como indesejável. A
emergência do conceito de eficácia coletiva e a sua relevância para explicar
por exemplo os níveis diferenciados de violência entre diferentes unidades de
vizinhança é tanto mais importante quanto ele surge associado à densidade da
infraestrutura cívica, medida pelo peso de instituições e organizações sem fins
lucrativos de ação marcadamente coletiva. A influência dessa infraestrutura
cívica vai para além das relações pessoais individuais de amizade ou
parentesco, para combinar o que Sampson chama de coesão social com expectativas
partilhadas de controlo social. E é também importante porque parece contrariar
a tese do declínio cívico individual, associado ao que Hirschman designava de
comportamentos de deceção face ao interesse coletivo. E como não seria de
esperar apontam para novas orientações na política pública, menos orientada
para a perspetiva tradicional dos públicos-alvo e mais apostada em valorizar o
papel de intermediação que a referida infraestrutura cívica pode protagonizar.”
De grande
atualidade esta revisita.
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