segunda-feira, 2 de julho de 2018

AS ILHAS DO PORTO OU DE NOVO A QUESTÃO DA HABITAÇÃO



(A questão da habitação tem comigo um relacionamento estranho. Nunca foi um tema de investigação ou reflexão permanente e de vez em quando emerge, por convite, nas minhas preocupações. Desta vez, é a problemática das ilhas e figuras similares na cidade do Porto, a convite da DOMUS SOCIAL para um encontro na próxima quinta-feira, no auditório do Teatro Campo Alegre.)

ARQUIPÉLAGO é um título sugestivo para uma sessão pública sobre o programa estratégico que a Câmara Municipal do Porto organiza na próxima quinta-feira, 5 de julho, no Teatro Campo Alegre. E através de um novo convite, bondoso e lisonjeiro para um não especialista do tema, lá de novo a problemática da habitação se cruza com a minha reflexão, desde os tempos em que, pela mão dos meus amigos Rui Oliveira, ainda vivo e Professor Abílio Cardoso já falecido para nosso infortúnio, o tema se cruzava com a minha reflexão sobre o território e sobre as Cidades.

O conhecimento do Professor Abílio Cardoso na Faculdade de Engenharia do Porto teve no CITTA e nas pessoas dos Professores Paulo Conceição e Isabel Breda Vásquez uma continuidade e muito aprofundamento. É do CITTA (Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente) e do Instituto de Construção da FEUP a autoria do Diagnóstico e do Programa Estratégico para as Ilhas na Cidade do Porto. É nesse âmbito que surge o convite para uma intervenção no painel final da sessão, dedicado aos modelos de gestão e intervenção, em companhia da sempre estimulante Professora Fernanda Paula Oliveira da Universidade de Coimbra, com moderação do vereador do Urbanismo da CMP Pedro Baganha.

Nesta recorrência episódica de visão sobre o tema, é altura de novo para novas leituras, sempre pressionado pelo tempo e pela necessidade de um rumo de intuição para discernir o que vale a pena ler e o que deve ser considerado lixo. A intuição tem sempre me ajudado e nestas incursões furtivas por temas que não constituem o centro nem da prática profissional, nem da pesquisa, tenho tido excelentes encontros num modelo de investigador acidental, farejando ideias que valem a pena explorar e incorporar numa reflexão mais estruturada.

Neste caso, o trabalho está facilitado pois o trabalho de base que inspira a sessão pública é de grande qualidade e minúcia, robusto quanto baste e um excelente quadro para, politicamente, o Executivo municipal se abalançar a uma intervenção de grande fôlego e repercussão na Cidade.

Embora em declínio de expressão na Cidade (indiretamente representado pelo número de situações de desocupação, sempre superiores às ocupadas), os trabalhos do CITTA e do IC da FEUP registam cerca de 4.900 alojamentos ocupados com estatuto de ilha ou similar e cerca de 10.500 habitantes associados, algo correspondente a cerca de 5% do total de alojamentos ocupados e da população residente na Cidade. Não é realidade despicienda e quando olhamos para a sua espacialização a sua expressão é ainda mais notória, seja nas freguesias que integram a primeira coroa em torno do centro histórico, seja no Porto oriental com expressão nas freguesias do Bonfim e de Campanhã, com relevo para esta última devido à concentração de situações mais críticas e atípicas.

Para conceber uma intervenção minimamente útil para os objetivos da sessão, que não deslustre o convite realizado, organizei uma reflexão estruturada em três entradas que julgo ser capaz de integrar num todo coerente.

A primeira entrada é obviamente o valioso material da equipa coordenada pela Isabel Breda Vásquez e pelo Paulo Conceição sobre o diagnóstico da Cidade em termos de ilhas e o programa estratégico associado. É um trabalho de grande minúcia, envolvendo uma inventariação rigorosa das tipologias de ilhas ainda reconhecíveis na Cidade, a sua composição social e económica, o estado de conservação de áreas comuns, de habitações e conexão com a Cidade, a hierarquia de situações prioritárias de intervenção, o perfil de proprietários, custos estimados de intervenção para que o programa não seja puro wishful thinking e o próprio perfil de programa estratégico. Quem sou eu para me sobrepor a trabalho tão minucioso e, pelo conhecimento que tenho dos seus coordenadores, necessariamente rigoroso. Material de confiança, por conseguinte. Como seria fácil de intuir, as ilhas não são apenas uma questão física e habitacional. Elas projetam outras dimensões da Cidade: a pobreza, o ficar abaixo do limiar de solvência das famílias, a desqualificação, o desemprego, o envelhecimento galopante, os reduzidos raios (por questão de custo de oportunidade de deslocação e ganho potencial) de procura de emprego. Não é percetível do estudo, qual o peso relativo de ilhas de propriedade pública (não apenas camarárias) e de ilhas de proprietários privados, seja de habitantes-senhorios ou de senhorios não residentes em ilhas. Essa diferenciação não é despicienda para um programa de intervenção.

A segunda entrada é a do modelo de Cidade em que me revejo e para o qual o programa estratégico deve contribuir, não sendo naturalmente neutro o contributo que lhe devemos pedir. É uma oportunidade para repensar de novo a Cidade diversa e com abertura a diferentes modelos de justiça espacial, retomando os contributos de Jane Jacobs que tanto marcaram a minha formação e reflexão em termos de desenvolvimento urbano. Quando pensava que a minha fixação em Jane Jacobs era própria de um cota fora do tempo, tive a satisfação de registar que a Town Planning Review de Março de 2017 publicou a síntese de uma valiosa Conferência Internacional “Jane Jacobs 100”, realizada na Universidade de Delft na Holanda em maio de 2016 que me tinha escapado e que comemorou com um grande debate o centenário da jornalista-economista urbana e a riqueza das suas reflexões.

Na terceira entrada, mais focada no modelo de gestão e intervenção, procuarei refletir sobre a relação entre o programa estratégico e a política de habitação para a Cidade do Porto (nunca perdendo de vista a inscrição metropolitana), perseguindo o velho problema que o planeamento enfrenta de saber o que é uma intervenção integrada e que implicações tem a abordagem em termos de modelos de gestão e governação (de governança melhor dizendo). Como referi anteriormente, nas Ilhas, quaisquer que sejam as tipologias, projetam-se problemas que remetem para outras políticas e não apenas para uma intervenção física de demolição, reabilitação, valorização ou outra qualquer forma de intervenção. O que sabemos é que uma Cidade que se quer projetar cosmopolita e atrativa no mundo do investimento e da atração de talentos não pode acolher no seu seio formas de habitação não decente e indigna de um padrão civilizacional de qualidade de vida, não perdendo e vista o nosso baixo nível de desenvolvimento económico. Mas uma intervenção desta natureza apela a uma integração com outras políticas que constituirá o cerne das opções de gestão e governação. Não esquecendo anda que a Cidade atravessa uma transição cujos contornos precisamos de conhecer melhor: a pressão do turismo e a chegada à Cidade dos Fundos de Investimento imobiliário de cariz internacional.

Enfim, material para outros posts, e sobretudo a esperança de que o convite tenha justificação.

P.S. Como é costume nestas andanças, sou frequentemente surpreendido pela revisita de coisas que escrevi e que valia a pena ter aprofundado, algo de incompatível com o meu estatuto de investigador acidental e indisciplinado. Desta vez, ficam alguns parágrafos que escrevera para a 1ª conferência CIHEL sobre A Cidade Habitada, sobre a obra do sociólogo americano Robert J. Sampson. Aqui fica:

O que é relevante anotar é que os estudos de Sampson apontam para que a ação coletiva cívica esteja ecologicamente concentrada e seja mais explicada pela densidade de organizações comunitárias do que por relações sociais entre indivíduos ou de membros de organizações cívicas tradicionais. Os elementos de pesquisa sugerem que a ação cívica coletiva não é o mero somatório de comportamentos cívicos tradicionais. O que é importante sobretudo em contextos de declínio cívico individual (sublinhado meu). A capacidade de ação coletiva sustentada é antes condicionada pela existência de uma elevada densidade de instituições e organizações estabelecidas que podem ser apropriadas e mobilizadas em favor de objetivos de ação coletiva.

Resumindo: os resultados da pesquisa de Sampson e o início da sua utilização comparativa são promissores a vários níveis. A relevância das unidades de vizinhança e de proximidade na grande Cidade vem ao encontro das ideias originais de Jane Jacobs segundo as quais haveria um preconceito emocional para com a concentração humana apontada à partida como indesejável. A emergência do conceito de eficácia coletiva e a sua relevância para explicar por exemplo os níveis diferenciados de violência entre diferentes unidades de vizinhança é tanto mais importante quanto ele surge associado à densidade da infraestrutura cívica, medida pelo peso de instituições e organizações sem fins lucrativos de ação marcadamente coletiva. A influência dessa infraestrutura cívica vai para além das relações pessoais individuais de amizade ou parentesco, para combinar o que Sampson chama de coesão social com expectativas partilhadas de controlo social. E é também importante porque parece contrariar a tese do declínio cívico individual, associado ao que Hirschman designava de comportamentos de deceção face ao interesse coletivo. E como não seria de esperar apontam para novas orientações na política pública, menos orientada para a perspetiva tradicional dos públicos-alvo e mais apostada em valorizar o papel de intermediação que a referida infraestrutura cívica pode protagonizar.”

De grande atualidade esta revisita.

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