(Já nos bastavam as tragédias de junho e outubro do ano
passado para representarem a nossa vergonha coletiva e a demonstração de como a
coexistência de algumas causas pode colocar a nu todas as incongruências do nosso
modelo de decisão territorial. Pois Pedrogão regressa com a pequena miséria do aproveitamento
indevido, própria de uma cultura de não accountability do uso de apoios públicos e privados.)
As tragédias
dos fogos de junho e outubro do ano passado, com a cruel devastação de pessoas
e património que geraram, parecem que estão condenadas a infernizar as nossas
representações e expiações coletivas.
Uma simples
reportagem da Visão com a denúncia de algumas irregularidades na mobilização do
fundo REVITA, aparentemente um número reduzido de situações face ao número
total de intervenções apoiadas pelo referido Fundo e por outros apoios, teve o
condão de fazer alinhar praticamente toda a comunicação social em função de uma
onda de recriminação, em linha com rumores locais. O que não deixa de ser
curioso quanto às oscilações de que a comunicação social se alimenta face ao
complexo e abrangente processo de apoio à revitalização de património devorado
pelas chamas. Há relativamente pouco tempo a onda era de denunciar a lentidão
da intervenção, culpa da velha burocracia e dos burocratas da fiscalização, algo
de incompreensível face à dimensão da tragédia e da devastação humana provocada.
Hoje, pelo contrário, a onda era já a de criticar a leviandade dos processos e o
não acautelamento de condições regulamentares. A esquizofrenia e bipolaridade do
jornalismo em Portugal são conhecidas e poderia indicar-vos uma série imensa de
situações de ser ou não ser, ter ou não ter e outras dicotomias que nunca
representam a dimensão real das coisas.
Sou um
defensor convicto dos processos de descentralização, mas não sacralizo o local
como espaço da pureza infinita dos processos de decisão. O local é também atravessado
pela pequena miséria dos aproveitamentos indevidos, que acontece aqui e ali,
numa cultura de tirar partido da intervenção pública para além dos limites em
função dos quais ela é desenhada. Essa não sacralização do local é tanto mais necessária
quanto mais persistir a cultura de não accountability
dos processos. A legislação portuguesa e as práticas administrativas em geral
encheram-se nos últimos anos de controlos documentais e formais dos processos de
apoio público. A gestão destes tipos de políticas públicas socorre-se de tantos
documentos formais quanto os possa exigir e lava daí as suas mãos. Com a degradação
dos serviços públicos, as funções de acompanhamento e controlo de terreno estão
limitados ao mínimo e os interesses locais continuam a revelar criatividade que
baste para desenvolverem pequenas alianças locais, com resultados nos momentos
políticos. Os municípios têm uma função muito relevante na promoção de uma cultura
de accountability designadamente nas
suas próprias intervenções, mas hesitam. Afirmava hoje o gestor do REVITA que
iria pedir informações à comissão dos representantes locais que acompanham o Fundo (link aqui) e já agora gostaria de saber que comissão é essa e que accountability tem a sua atividade .
A pequena
miséria destas coisas tende, regra geral, a gerar ondas de opinião claramente
injustas para a dimensão de todo o processo e desproporcionadas face à
magnitude de fundos e apoios envolvidos. Mas a pequena miséria deve ser
combatida tanto quanto a grande miséria e não é por ser eventualmente residual
que não exige apuramento de responsabilidades.
Como sempre,
a resposta espontânea dos portugueses foi bonita. Mas falta-lhe uma cultura de
exigência, de apuramento de dados de execução de cumprimento, transparente.
Não havia
necessidade.
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