quinta-feira, 19 de julho de 2018

NÃO HAVIA NECESSIDADE!



(Já nos bastavam as tragédias de junho e outubro do ano passado para representarem a nossa vergonha coletiva e a demonstração de como a coexistência de algumas causas pode colocar a nu todas as incongruências do nosso modelo de decisão territorial. Pois Pedrogão regressa com a pequena miséria do aproveitamento indevido, própria de uma cultura de não accountability do uso de apoios públicos e privados.)

As tragédias dos fogos de junho e outubro do ano passado, com a cruel devastação de pessoas e património que geraram, parecem que estão condenadas a infernizar as nossas representações e expiações coletivas.

Uma simples reportagem da Visão com a denúncia de algumas irregularidades na mobilização do fundo REVITA, aparentemente um número reduzido de situações face ao número total de intervenções apoiadas pelo referido Fundo e por outros apoios, teve o condão de fazer alinhar praticamente toda a comunicação social em função de uma onda de recriminação, em linha com rumores locais. O que não deixa de ser curioso quanto às oscilações de que a comunicação social se alimenta face ao complexo e abrangente processo de apoio à revitalização de património devorado pelas chamas. Há relativamente pouco tempo a onda era de denunciar a lentidão da intervenção, culpa da velha burocracia e dos burocratas da fiscalização, algo de incompreensível face à dimensão da tragédia e da devastação humana provocada. Hoje, pelo contrário, a onda era já a de criticar a leviandade dos processos e o não acautelamento de condições regulamentares. A esquizofrenia e bipolaridade do jornalismo em Portugal são conhecidas e poderia indicar-vos uma série imensa de situações de ser ou não ser, ter ou não ter e outras dicotomias que nunca representam a dimensão real das coisas.

Sou um defensor convicto dos processos de descentralização, mas não sacralizo o local como espaço da pureza infinita dos processos de decisão. O local é também atravessado pela pequena miséria dos aproveitamentos indevidos, que acontece aqui e ali, numa cultura de tirar partido da intervenção pública para além dos limites em função dos quais ela é desenhada. Essa não sacralização do local é tanto mais necessária quanto mais persistir a cultura de não accountability dos processos. A legislação portuguesa e as práticas administrativas em geral encheram-se nos últimos anos de controlos documentais e formais dos processos de apoio público. A gestão destes tipos de políticas públicas socorre-se de tantos documentos formais quanto os possa exigir e lava daí as suas mãos. Com a degradação dos serviços públicos, as funções de acompanhamento e controlo de terreno estão limitados ao mínimo e os interesses locais continuam a revelar criatividade que baste para desenvolverem pequenas alianças locais, com resultados nos momentos políticos. Os municípios têm uma função muito relevante na promoção de uma cultura de accountability designadamente nas suas próprias intervenções, mas hesitam. Afirmava hoje o gestor do REVITA que iria pedir informações à comissão dos representantes locais que acompanham o Fundo (link aqui) e já agora gostaria de saber que comissão é essa e que accountability tem a sua atividade .

A pequena miséria destas coisas tende, regra geral, a gerar ondas de opinião claramente injustas para a dimensão de todo o processo e desproporcionadas face à magnitude de fundos e apoios envolvidos. Mas a pequena miséria deve ser combatida tanto quanto a grande miséria e não é por ser eventualmente residual que não exige apuramento de responsabilidades.

Como sempre, a resposta espontânea dos portugueses foi bonita. Mas falta-lhe uma cultura de exigência, de apuramento de dados de execução de cumprimento, transparente.

Não havia necessidade.

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