(Salvador Dali - A Persistência da Memória)
(“Há décadas em que nada acontece, ao passo que existem
semanas em que as décadas acontecem” é uma máxima que o imaginário da internet
atribui a Lenine. Embora
não tenha conseguido apurar com rigor a fonte na vastíssima obra do revolucionário
russo em que se baseia o referido imaginário, acho que ela representa bem o que
este estranho ano de 2020 nos trouxe, se por semanas entendermos os nove -dez meses
do nosso descontentamento.)
Confesso que fiz algumas pesquisas mas que só me
confirmaram que o imaginário da internet cita esta expressão, mas não
identifica regularmente a fonte. E como, fruto da passagem do tempo, as Obras
de Lenine estão numa estante em Seixas, não tive oportunidade para verificar se
o imaginário webiano está ou não correto, ou se é como aquelas coisas que tanto
são afirmadas que se substituem à realidade.
Mas o que me atrai na fórmula é a sua capacidade de
traduzir a fonte de aceleração de processos que vivemos em 2020, muito
provavelmente prolongada para 2021, enquanto o processo de vacinação, que evoluirá
diferenciadamente por todo o mundo (até agora Israel tem apresentado uma
evolução espantosa de intensidade), se misturar com a incidência da
disseminação viral e progressivamente se impor.
Como economista especialmente interessado na dimensão
longa do tempo em economia e nas mudanças estruturais que só nesse tempo longo
têm maturação suficiente, visibilidade e interpretação possível, estamos de novo
confrontados com a mesma regularidade histórica de outras grandes mudanças.
Essa regularidade diz respeito à diferente perceção das mudanças quando essa
perceção se constrói após a manifestação do tempo longo e quando ela é vivida
no tempo das coisas acontecerem. Quando as mudanças e a aceleração das mesmas
são percecionadas após o tempo da sua maturação estar avançado a sua
interpretação é mais inequívoca. Porém, quando as percecionamos no momento em
que ocorrem e que não sabemos ainda se vão gerar mudanças definitivas a
indeterminação é grande.
É isso que está a acontecer no tempo presente. Todos os
dias nos jornais de componente mais reflexiva e mais abertos à investigação somos
bombardeados com antecipações do chamado novo normal, visões mais ou menos
apocalípticas das mudanças que se vão impor à inércia, prospetivas variadas de novas
qualificações e competências que vão ser exigidas. A essas antecipações para
gostos variados contrapõem-se os arautos das mudanças ilusórias, aqui e ali
temperadas com algum negacionismo ou com formas variadas de resistência à
mudança. Como sempre aconteceu na história do tempo longo e das maturações de
largo alcance haverá alguns, apenas alguns, que irão distinguir-se na efetiva
antecipação das reais oportunidades, alguns ganhando empresarialmente dinheiro-inovação,
outros marcando um lugar na história do avanço do bem público. Outros irão
ficar ao pé da oportunidade, rodearam-na, até a intuíram, mas não a agarraram.
Alguns temas foram particularmente comentados:
- A viabilidade do tele-trabalho como elemento definitivo a ter em conta na relação
casa-emprego e na mobilidade associada;
- A aceleração da transformação digital;
- A transformação dos modos de consumo e a consequente adaptação ou inovação
nos modos de venda e entrega;
- A transformação da logística da distribuição;
- A organização do próprio habitat e a perceção da importância chave da
habitação em termos sanitários.
Não é a altura certa para elaborar sobre estes domínios
de prospetiva definitiva ou meramente ilusória, o tempo longo o dirá.
Interessa-me mais neste momento realçar algumas dimensões da aceleração referida
que, embora sem entrarem no domínio da prospetiva das grandes mudanças, vieram
repor ideias e convicções que pareciam abaladas.
Muitos já disseram que 2020 nos devolveu a importância da
ciência e do conhecimento. É algo de muito relevante. Não que a ciência nos
tenha sido devolvida como um deux-ex-machina todo poderoso e sem conflitualidade.
Vimos inclusivamente como as roupagens da ciência foram utilizadas para a
glória efémera mediática de alguns, mas vimos também como a utilização equilibrada
e sensata da evidência e da sua explicação científica se sobrepôs claramente e
como, intuitivamente e sem cultura científica muito desenvolvida, o cidadão
aprendeu a distinguir entre as duas utilizações da ciência. O que é notável,
pois nunca como hoje foi necessária uma cultura de comunicação e divulgação da
ciência. A complexidade dos problemas e a profunda divisão do trabalho científico,
muito carenciado de plataformas de integração disciplinar, tornam cada vez mais
difícil essa comunicação, exigindo a proliferação de muitos Carl Sagan, Richard
Attemborough e outros com essa competência de transformar o complexo em ideias
simples. Mas o que foi evidente é que a cooperação de recursos na investigação
científica é crucial, seja sob a modalidade de “open science”, seja sob
a forma de parcerias avançadas entre a investigação patenteada e realizada “in-house”
em grandes grupos empresariais e outras formas de progressão do conhecimento.
Mas a dimensão mais relevante a assinalar é o reconhecimento
de que a combinação pandemia-ciência constituiu um golpe devastador nas
pretensões do populismo político. Recordo que, tal como o trouxe para este
blogue, uma das dimensões mais reveladoras do populismo é o seu desprezo pelo conhecimento
das chamadas elites, em que obviamente a ciência está representada (link aqui). Mais do que
desprezo, o populismo mais assanhado e desbocado (inspirado ou protagonizado
por Trump) tudo fez para desvalorizar aos olhos da população ululante o papel
do conhecimento e dessas elites. Todos nos recordamos do modo como Trump tratou
o epidemiologista americano Anthony Fauci, cuja paciência e resistência para
aturar as tiradas trumpianas ficarão nos anais da ciência pelo que elas
representaram de persistente defesa do valor e alcance do conhecimento científico.
A combinação pandemia-ciência arrasou essa tendência. Não sabemos se representou
um golpe mortal, só o tempo longo o irá revelar.
Mas a aceleração do tempo das mudanças que enfrentamos
trouxe ainda uma outra realidade que poderíamos sintetizar na fórmula “a
pandemia deu sinais de grandes oportunidades de mudança”, o que não significa
que a lógica dos comportamentos das pessoas e das instituições as transformem
em realidade. Estou a referir-me ao que os processos de confinamento trouxeram
sobretudo no plano urbano à despoluição ou descarbonização. E aqui há que
distinguir entre dois tipos de sinais – o errado e o que é promissor. O sinal
errado é o perigo de se confundir despoluição ou descarbonização com
crescimento zero. Esta ideia é recorrente no capitalismo. Já nos anos 60,
quando o tema do esgotamento dos recursos naturais estava no centro do debate,
as teses do crescimento zero tiveram alguma presença mediática e na literatura.
O sinal promissor é a pandemia mostrar que se podem equacionar outras
oportunidades de avanço de novas soluções que não impliquem esse crescimento
zero, ou seja que não exijam cidades desertas e sem vida. A partir do momento
em que talvez tardiamente (conflitualidade da ciência) se compreendeu que a qualidade
do ar pesa na transmissão viral por aerossóis, a redução da poluição urbana transformou-se
também ela numa via para controlo da disseminação. Um vulto notável da gestão e
do planeamento estratégico, Henry Mintzberg, foi dos primeiros (link aqui), fora do mundo
da epidemiologia e da infeciologia, a salientar este aspeto e a bater-se por
essa ideia.
Nota final:
Mais de seis mil casos de contágios confirmados no dia de
hoje. Pode ser ainda um efeito estatístico de feriados e de interrupção de comunicação
e contagem? Pode ser. Mas a ciência também avisou que a distensão do Natal a isso
poderia conduzir. Só nos próximos perceberemos a tendência.