(A Conferência do
CIHEL é já amanhã e aqui fica um lamiré do que poderá ser a minha intervenção, tudo dependendo da dinâmica que o jornalista-moderador
entender imprimir à conversa…)
1. O CONVITE
O programa não é totalmente explícito sobre a lógica e racional desta mesa
redonda. Aparentemente, buscam-se três perspetivas sobre o tema “A Cidade
Habitada e a Cidade por Habitar”, mais propriamente as de um economista, de um
arquiteto e de um engenheiro, num tema que pretende ser um contraponto ou
complemento do tema geral da Conferência e do 4º CIHEL – A Cidade Habitada. Mas
tudo isto é potencialmente ambíguo ou mesmo equívoco. Pela parte que me toca,
solicitar a perspetiva do economista sobre o tema em causa tem que se lhe diga.
Duvido que haja a posição do Economista, sobretudo nos tempos que correm, por
isso é mais sensato esperar que teremos a perspetiva do António Figueiredo que
por acaso é economista e nem sequer um economista urbano especializado no
assunto, que os há. Depois, se a Cidade Habitada é um tema relativamente
estabilizado já o contraponto com a Cidade por Habitar é mais movediço. Será
que podemos incluir na Cidade por Habitar todo o espaço público de fruição por
parte dos residentes no Habitado ou será que teremos de remeter a Cidade não
Habitada para o solo expectante que aguarda uso, seja público seja privado,
seja para habitação ou outras funções necessárias a uma Cidade?
Navegarei, por isso, nesta ambiguidade, com as cartas de navegação que me
são mais familiares, profissionalmente, academicamente e até como cidadão
interessado em procurar a alma da Cidade.
2. URBANIZAÇÃO, CIDADE E
DESENVOLVIMENTO
A entrada no tema desta mesa redonda que vem mais ao encontro dos meus
interesses académicos é o da urbanização como uma das manifestações estruturais
mais sólidas e robustas dos processos de desenvolvimento. O que para um evento
com as características do CIHEL me parece ainda mais ajustado. A Cidade surge
nessa mediação entre a urbanização e o desenvolvimento.
Sabemos hoje que a urbanização, medida por exemplo pela percentagem de
população que vive em aglomerados urbanos, é uma transformação irreversível,
fortemente correlacionada com o desenvolvimento económico e com as suas
principais manifestações. Mas sabemos também que essa mudança estrutural não
está igualmente avançada por todo o mundo, refletindo entre outras coisas os
gaps de desenvolvimento observados na economia mundial e que ela não se
manifesta segundo uma homogeneidade de modelos por todo o território.
Hoje, no mundo, apesar dessas disparidades, mais do que metade da população
mundial vive já em aglomerados urbanos, embora menos de metade o faça em
cidades com mais de um milhão de habitantes (tabela 1).
Tabela 1 - O
avanço irreversível mas desigual da urbanização, 1960-2015
Tipo de
países
|
%
População em aglomerações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes
|
%
População Urbana
|
% de
População na maior cidade
|
|||
1960
|
2015
|
1960
|
2015
|
1960
|
2015
|
|
Países de baixo
rendimento
|
3,6
|
11,2
|
11,8
|
30,7
|
27,0
|
32,3
|
Países de médio
rendimento
|
10,0
|
21,1
|
24,5
|
50,8
|
16,4
|
14,2
|
Países de alto
rendimento
|
…
|
63,8
|
81,1
|
18,6
|
19,1
|
|
Mundo
|
13,9
|
22,9
|
33,6
|
53,9
|
17,6
|
16,3
|
A cidade, nas suas diferentes morfologias, origens históricas, dimensões e
densidade acaba por ser a melhor expressão da irreversibilidade dessa
transformação estrutural, mas também do princípio de que a urbanização não se
manifesta sempre de forma homogénea pelos diferentes territórios em que se
observa.
Sabemos ainda que a urbanização acompanha de perto a evolução do
desenvolvimento económico. Por exemplo, em Portugal, entre 1060 e 2014, a
evolução da percentagem de população urbana está fortemente correlacionada com
o produto per capita à paridade de poder de compra, com um coeficiente de
correlação bastante elevado de 92%.
Mas o tema da urbanização é mais vasto que o da Cidade. Os anglo-saxónicos
distinguem mesmo entre town e city, afinamento linguístico que o português tem
dificuldade de acolher, pois cidadezinha ou pequena cidade não têm o mesmo
impacto e rigor.
As diferentes formas da Cidade podem ser entendidas como uma consequência
da não manifestação homogénea da urbanização. A Cidade enquanto manifestação
central da urbanização pode assim coexistir em contextos socio-territoriais
muito diversificados. Assim, a relação entre a Cidade Habitada (CH) e a Cidade
por Habitar (CPH) vem influenciada por essa conclusão que resulta do não
determinismo da urbanização. A sócio-demografia influencia decisivamente essa
relação, como por exemplo acontece em duas situações extremadas: “shrinking cities” versus “explosive cities”. A demografia, na sua
dupla e relacionada dimensão de crescimento natural e de atração/repulsão,
obriga-nos a matizar a ideia de que o mundo está a caminhar para a urbanização
irreversível. Essa questão é tanto mais complexa quanto sabemos que as
variáveis estruturantes do crescimento natural, a fertilidade e a mortalidade
não são variáveis totalmente independentes do desenvolvimento económico, com o
qual a urbanização está robustamente correlacionada. E as próprias migrações
para fora ou para dentro não são indiferentes aos gaps de rendimento per
capita.
A diversidade dos contextos e das formas que traduzem o avanço irreversível
da urbanização e das diferentes formas de expressão da Cidade é um tema vital
para o CIHEL. Todos estamos interessados no tema mas compreendemos que a
diversidade dos modelos nos obriga a uma profunda reflexão sobre o contexto de
evolução das formas urbanas. Assim teremos na relação entre a CH e a CPH
matizes e diferenças que decorrem entre outras matérias da diferente pulsão
demográfica e da diferente pressão com que a Cidade é procurada, como o
demonstra perfeitamente a oposição entre as shrinking cities e as explosive
cities.
3. A CIDADE COMO UM IMENSO
LABORATÓRIO DE APRENDIZAGEM DA COMPLEXIDADE
Entre 1961 e 2010 há um período de quase cinquenta anos suficientemente
longo para contrapormos duas obras que fazem parte da minha própria
aprendizagem das questões urbanas. Em 1961, Jane Jacobs, uma jornalista
canadiana que haveria de transformar-se numa referência para o estudo da
Cidade, publicou The Death and the Life of Great American Cities, na altura em
que Nova Iorque vivia uma intensa transformação e que Jane analisou como
observadora rigorosa e militante ativista urbana. Em 2010, Sharon Zukin
publicou Naked City – The Death and Life of Authentic Urban Places, uma visão
distanciada no tempo de algum romantismo analítico de Jacobs. Quase cinquenta
anos as separam e por isso profundas transformações se concretizaram entretanto,
mas há um ponto comum entre as duas mulheres investigadoras a procura da
diversidade e autocontrolo social e da autenticidade da Cidade, a primeira
talvez com a ilusão de que essa diversidade pode ser potenciada em grande
medida pelo planeamento e por intervenções de política urbana, a segunda mais
orientada para a diversidade social como condição indispensável para a criação
de uma efetiva interação de rua e de vizinhança.
Não estamos por certo condenados a depender da realidade das cidades
americanas como fonte de investigação e nem estaremos autorizados a
extrapolações preguiçosas e inconvenientes, mas temos de convir que entre os
grandes há um predomínio da investigação americana. Convivo bem com isso.
Apesar dos 50 anos de distância, Jane Jacobs continua a ter razão quando
então se insurgia contra a dificuldade das disciplinas urbanas compreenderem
que as cidades devem ser vistas como um imenso laboratório de experimentação e
erro, de falhanços e de êxitos seja em termos da construção da Cidade, seja em
termos do desenho da mesma. Não temos de estar subordinados à dicotomia de que
a Cidade se faz com a ciência ou pela vontade democrática dos cidadãos. É
possível compreender e trabalhar as Cidades na perspetiva de que podem em
simultâneo conservar ou desenvolver relações de vizinhança e de proximidade e
manter-se conectadas com o exterior e com o papel que a Cidade desempenha nos
rumos da globalização.
Em meu entender, as relações entre a CH e a CPH não podem ignorar que a
Cidade é densidade, sobre a qual penso que é necessário construir um modelo de
diversidade, de usos mas sobretudo de pessoas, de interação social, de
confiança e autocontrolo social, de concentração vibrante de conhecimento, da
rua, ao entorno de proximidade e ao distrito, mantendo a defesa da privacidade
como um bem precioso. É necessário desconstruir a ideia de que a concentração e
a densidade elevada são sinónimos de degradação da vida, conscientes que estejamos
da nossa capacidade de engenharia e de organização para lidar com a
concentração. Jacobs chamava a essa relutância de emocional, com profundas
implicações no planeamento urbano.
O contraponto entre a valorização das condições de vizinhança e de proximidade
em ambientes densos, aos quais podemos associar a virtualidade da diversidade e
da riqueza de interações, e o reconhecimento de que as Cidades são portas dos
territórios para a globalização merece aprofundamento.
Embora sujeita a uma hierarquização, representada na metáfora das cidades
que jogam em ligas diferentes de posicionamento internacional, as cidades por
mais pequenas que sejam têm um papel a desempenhar na globalização.
Este reconhecimento tem sido indevidamente entendido por alguns como uma
espécie e passaporte para a supremacia dos fatores externos sobre os internos
na explicação do funcionamento das cidades. As “ciber-cidades”, as “cidades
franchisadas”, as cidades financeiras, as cidades homogéneas e
incaracterísticas são alguns epítetos com que a submissão da cidade aos ditames
da globalização é descrita.
Porém, está hoje demonstrado que, apesar da destruição dos limites da
Cidade, determinada pela sua inserção em processos mais vastos, onde se inclui
a conectividade comunicacional dos seus residentes, as dimensões da densidade,
da diversidade, da convivialidade, da vizinhança e da proximidade importam e
devem ser considerados como ativos. A Cidade de Max Weber (1947) já não existe e o fenómeno da
cidade-região ou região urbana já em 1985 Jane Jacobs o tinha caracterizado .
Hoje, outros conceitos podem ser forjados, tais como a Cidades Globais de Saskia
Sassen para descrever essa inserção na globalização.
A redescoberta dos fatores de vizinhança e de proximidade tem várias
origens embora pretenda destacar nesta breve reflexão o contributo da
sociologia urbana americana (e cá estamos de novo com o reconhecimento de que a
teoria urbana deve muito à inspiração americana). A obra de Robert J. Sampson
sobre os efeitos de vizinhança e proximidade na cidade de Chicago é um contributo marcante para essa
redescoberta, elaborada a partir de um princípio básico: os efeitos de
vizinhança não são o simples reflexo de características individuais e resultam
de processos de interação social e institucional, onde se destaca o tecido
organizacional cívico e sem fins lucrativos que institucionaliza aquelas
relações e lhes dá voz de representação e defesa de interesses. Um princípio
básico de abordagem, mas também um método, a que Sampson chama a ecometria, um
conjunto sofisticado de dados ecléticos, designadamente no âmbito dos chamados
“big data”, métodos e abordagens de terreno destinados a caracterizar o
contexto evolutivo dos efeitos de vizinhança. Sucintamente, a análise de
proximidade (bairros, quarteirões e outras formas de organização da vizinhança)
emerge como alternativa à seleção individual e à desvalorização do local
associada aos efeitos do digital e da globalização.
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