domingo, 5 de março de 2017

A CIDADE HABITADA VI: FECHA-SE O PUZZLE




(A Conferência do CIHEL é já amanhã e aqui fica um lamiré do que poderá ser a minha intervenção, tudo dependendo da dinâmica que o jornalista-moderador entender imprimir à conversa…)

1.         O CONVITE

O programa não é totalmente explícito sobre a lógica e racional desta mesa redonda. Aparentemente, buscam-se três perspetivas sobre o tema “A Cidade Habitada e a Cidade por Habitar”, mais propriamente as de um economista, de um arquiteto e de um engenheiro, num tema que pretende ser um contraponto ou complemento do tema geral da Conferência e do 4º CIHEL – A Cidade Habitada. Mas tudo isto é potencialmente ambíguo ou mesmo equívoco. Pela parte que me toca, solicitar a perspetiva do economista sobre o tema em causa tem que se lhe diga. Duvido que haja a posição do Economista, sobretudo nos tempos que correm, por isso é mais sensato esperar que teremos a perspetiva do António Figueiredo que por acaso é economista e nem sequer um economista urbano especializado no assunto, que os há. Depois, se a Cidade Habitada é um tema relativamente estabilizado já o contraponto com a Cidade por Habitar é mais movediço. Será que podemos incluir na Cidade por Habitar todo o espaço público de fruição por parte dos residentes no Habitado ou será que teremos de remeter a Cidade não Habitada para o solo expectante que aguarda uso, seja público seja privado, seja para habitação ou outras funções necessárias a uma Cidade?

Navegarei, por isso, nesta ambiguidade, com as cartas de navegação que me são mais familiares, profissionalmente, academicamente e até como cidadão interessado em procurar a alma da Cidade.

2.         URBANIZAÇÃO, CIDADE E DESENVOLVIMENTO

A entrada no tema desta mesa redonda que vem mais ao encontro dos meus interesses académicos é o da urbanização como uma das manifestações estruturais mais sólidas e robustas dos processos de desenvolvimento. O que para um evento com as características do CIHEL me parece ainda mais ajustado. A Cidade surge nessa mediação entre a urbanização e o desenvolvimento.

Sabemos hoje que a urbanização, medida por exemplo pela percentagem de população que vive em aglomerados urbanos, é uma transformação irreversível, fortemente correlacionada com o desenvolvimento económico e com as suas principais manifestações. Mas sabemos também que essa mudança estrutural não está igualmente avançada por todo o mundo, refletindo entre outras coisas os gaps de desenvolvimento observados na economia mundial e que ela não se manifesta segundo uma homogeneidade de modelos por todo o território.
Hoje, no mundo, apesar dessas disparidades, mais do que metade da população mundial vive já em aglomerados urbanos, embora menos de metade o faça em cidades com mais de um milhão de habitantes (tabela 1).

Tabela 1 - O avanço irreversível mas desigual da urbanização, 1960-2015

Tipo de países
% População em aglomerações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes
% População Urbana
% de População na maior cidade
1960
2015
1960
2015
1960
2015
Países de baixo rendimento
3,6
11,2
11,8
30,7
27,0
32,3
Países de médio rendimento
10,0
21,1
24,5
50,8
16,4
14,2
Países de alto rendimento

63,8
81,1
18,6
19,1
Mundo
13,9
22,9
33,6
53,9
17,6
16,3

A cidade, nas suas diferentes morfologias, origens históricas, dimensões e densidade acaba por ser a melhor expressão da irreversibilidade dessa transformação estrutural, mas também do princípio de que a urbanização não se manifesta sempre de forma homogénea pelos diferentes territórios em que se observa.

Sabemos ainda que a urbanização acompanha de perto a evolução do desenvolvimento económico. Por exemplo, em Portugal, entre 1060 e 2014, a evolução da percentagem de população urbana está fortemente correlacionada com o produto per capita à paridade de poder de compra, com um coeficiente de correlação bastante elevado de 92%.

Mas o tema da urbanização é mais vasto que o da Cidade. Os anglo-saxónicos distinguem mesmo entre town e city, afinamento linguístico que o português tem dificuldade de acolher, pois cidadezinha ou pequena cidade não têm o mesmo impacto e rigor.

As diferentes formas da Cidade podem ser entendidas como uma consequência da não manifestação homogénea da urbanização. A Cidade enquanto manifestação central da urbanização pode assim coexistir em contextos socio-territoriais muito diversificados. Assim, a relação entre a Cidade Habitada (CH) e a Cidade por Habitar (CPH) vem influenciada por essa conclusão que resulta do não determinismo da urbanização. A sócio-demografia influencia decisivamente essa relação, como por exemplo acontece em duas situações extremadas: “shrinking cities” versus “explosive cities”. A demografia, na sua dupla e relacionada dimensão de crescimento natural e de atração/repulsão, obriga-nos a matizar a ideia de que o mundo está a caminhar para a urbanização irreversível. Essa questão é tanto mais complexa quanto sabemos que as variáveis estruturantes do crescimento natural, a fertilidade e a mortalidade não são variáveis totalmente independentes do desenvolvimento económico, com o qual a urbanização está robustamente correlacionada. E as próprias migrações para fora ou para dentro não são indiferentes aos gaps de rendimento per capita.

A diversidade dos contextos e das formas que traduzem o avanço irreversível da urbanização e das diferentes formas de expressão da Cidade é um tema vital para o CIHEL. Todos estamos interessados no tema mas compreendemos que a diversidade dos modelos nos obriga a uma profunda reflexão sobre o contexto de evolução das formas urbanas. Assim teremos na relação entre a CH e a CPH matizes e diferenças que decorrem entre outras matérias da diferente pulsão demográfica e da diferente pressão com que a Cidade é procurada, como o demonstra perfeitamente a oposição entre as shrinking cities e as explosive cities.

3.         A CIDADE COMO UM IMENSO LABORATÓRIO DE APRENDIZAGEM DA COMPLEXIDADE

Entre 1961 e 2010 há um período de quase cinquenta anos suficientemente longo para contrapormos duas obras que fazem parte da minha própria aprendizagem das questões urbanas. Em 1961, Jane Jacobs, uma jornalista canadiana que haveria de transformar-se numa referência para o estudo da Cidade, publicou The Death and the Life of Great American Cities, na altura em que Nova Iorque vivia uma intensa transformação e que Jane analisou como observadora rigorosa e militante ativista urbana. Em 2010, Sharon Zukin publicou Naked City – The Death and Life of Authentic Urban Places, uma visão distanciada no tempo de algum romantismo analítico de Jacobs. Quase cinquenta anos as separam e por isso profundas transformações se concretizaram entretanto, mas há um ponto comum entre as duas mulheres investigadoras a procura da diversidade e autocontrolo social e da autenticidade da Cidade, a primeira talvez com a ilusão de que essa diversidade pode ser potenciada em grande medida pelo planeamento e por intervenções de política urbana, a segunda mais orientada para a diversidade social como condição indispensável para a criação de uma efetiva interação de rua e de vizinhança.

Não estamos por certo condenados a depender da realidade das cidades americanas como fonte de investigação e nem estaremos autorizados a extrapolações preguiçosas e inconvenientes, mas temos de convir que entre os grandes há um predomínio da investigação americana. Convivo bem com isso.

Apesar dos 50 anos de distância, Jane Jacobs continua a ter razão quando então se insurgia contra a dificuldade das disciplinas urbanas compreenderem que as cidades devem ser vistas como um imenso laboratório de experimentação e erro, de falhanços e de êxitos seja em termos da construção da Cidade, seja em termos do desenho da mesma. Não temos de estar subordinados à dicotomia de que a Cidade se faz com a ciência ou pela vontade democrática dos cidadãos. É possível compreender e trabalhar as Cidades na perspetiva de que podem em simultâneo conservar ou desenvolver relações de vizinhança e de proximidade e manter-se conectadas com o exterior e com o papel que a Cidade desempenha nos rumos da globalização.

Em meu entender, as relações entre a CH e a CPH não podem ignorar que a Cidade é densidade, sobre a qual penso que é necessário construir um modelo de diversidade, de usos mas sobretudo de pessoas, de interação social, de confiança e autocontrolo social, de concentração vibrante de conhecimento, da rua, ao entorno de proximidade e ao distrito, mantendo a defesa da privacidade como um bem precioso. É necessário desconstruir a ideia de que a concentração e a densidade elevada são sinónimos de degradação da vida, conscientes que estejamos da nossa capacidade de engenharia e de organização para lidar com a concentração. Jacobs chamava a essa relutância de emocional, com profundas implicações no planeamento urbano.

O contraponto entre a valorização das condições de vizinhança e de proximidade em ambientes densos, aos quais podemos associar a virtualidade da diversidade e da riqueza de interações, e o reconhecimento de que as Cidades são portas dos territórios para a globalização merece aprofundamento.

Embora sujeita a uma hierarquização, representada na metáfora das cidades que jogam em ligas diferentes de posicionamento internacional, as cidades por mais pequenas que sejam têm um papel a desempenhar na globalização.
Este reconhecimento tem sido indevidamente entendido por alguns como uma espécie e passaporte para a supremacia dos fatores externos sobre os internos na explicação do funcionamento das cidades. As “ciber-cidades”, as “cidades franchisadas”, as cidades financeiras, as cidades homogéneas e incaracterísticas são alguns epítetos com que a submissão da cidade aos ditames da globalização é descrita.

Porém, está hoje demonstrado que, apesar da destruição dos limites da Cidade, determinada pela sua inserção em processos mais vastos, onde se inclui a conectividade comunicacional dos seus residentes, as dimensões da densidade, da diversidade, da convivialidade, da vizinhança e da proximidade importam e devem ser considerados como ativos. A Cidade de Max Weber  (1947) já não existe e o fenómeno da cidade-região ou região urbana já em 1985 Jane Jacobs o tinha caracterizado . Hoje, outros conceitos podem ser forjados, tais como a Cidades Globais de Saskia Sassen para descrever essa inserção na globalização.

A redescoberta dos fatores de vizinhança e de proximidade tem várias origens embora pretenda destacar nesta breve reflexão o contributo da sociologia urbana americana (e cá estamos de novo com o reconhecimento de que a teoria urbana deve muito à inspiração americana). A obra de Robert J. Sampson sobre os efeitos de vizinhança e proximidade na cidade de Chicago  é um contributo marcante para essa redescoberta, elaborada a partir de um princípio básico: os efeitos de vizinhança não são o simples reflexo de características individuais e resultam de processos de interação social e institucional, onde se destaca o tecido organizacional cívico e sem fins lucrativos que institucionaliza aquelas relações e lhes dá voz de representação e defesa de interesses. Um princípio básico de abordagem, mas também um método, a que Sampson chama a ecometria, um conjunto sofisticado de dados ecléticos, designadamente no âmbito dos chamados “big data”, métodos e abordagens de terreno destinados a caracterizar o contexto evolutivo dos efeitos de vizinhança. Sucintamente, a análise de proximidade (bairros, quarteirões e outras formas de organização da vizinhança) emerge como alternativa à seleção individual e à desvalorização do local associada aos efeitos do digital e da globalização.

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