quarta-feira, 23 de agosto de 2017

NA FRONTEIRA ENTRE A EUROPA E A ÁSIA (IV)


Hoje vou fixar-me na Arménia. Ou, como os nativos se chamam a si próprios, Hayastan (Terra de Hayk, sendo este o lendário fundador na Nação Arménia e dito tetraneto de Noé). Reduzido hoje a uma dimensão historicamente minúscula, a identidade do país alimenta-se da nostalgia dos seus tempos gloriosos e imperiais – o primeiro mapa que qualquer guia mostra ao turista é o da Grande Arménia (mapa imediatamente abaixo) do Reino de Tigranes (século I a.C.) – e de uma enorme exaltação em torno de factos longínquos – desde logo com as perguntas convencionais tipo “você sabia”, como sejam a do mapa-múndi mais antigo do mundo (copiado de um original de dois séculos atrás em relação ao babilónico, que reside no “British Museum” e data de 500 a.C. – ver mais abaixo) a referenciar apenas a Arménia de entre as realidades nacionais que permanecem na atualidade, por um lado, ou a do primeiro país cristão do mundo (a evangelização de Tadeu e Bartolomeu, discípulos de Jesus, ter-se-á dado entre 60 e 68 d.C. e a adoção oficial em 301), por outro.

Depois vem tudo o resto, com algumas marcas simbólicas/míticas à mistura – por exemplo: o país situa-se no planalto que envolve a montanha do Ararat e terá sido esse o local onde a Arca de Noé encalhou após o Dilúvio (daí a presença de tais montes no centro do escudo arménio e a verdadeira obsessão por eles no quotidiano do povo arménio, também com a maior avenida de Yerevan a ter o nome do primeiro explorador moderno (Abovian) a alcançar o cume da montanha – note-se que o Ararat é atualmente território turco); a Grande Arménia foi historicamente a terra dos três grandes lagos da Região (o Van, hoje maioritariamente turco, o Urmia, maioritariamente iraniano, e o Sevan, único que permanece arménio). Estes pontos, conjuntamente com tantos outros, servem de estímulo ao fervor religioso e nacionalista que incontestavelmente grassa no país.



Acresce uma catadupa imensa e sucessiva de desgraças (guerras, invasões, anexações, chacinas e desastres naturais). Dos jugos bizantino, mongol, otomano, persa e russo que levaram o povo arménio a seis séculos sem independência ao jugo soviético de setenta e um anos no século XX (que pôs fim à curta vida de menos de dois anos da República Democrática da Arménia). E, principalmente, o “Genocídio”, esse conjunto de eventos ocorridos entre 1915 e 1923 que um cada vez maior número de historiadores e responsáveis políticos aceitam como tendo constituído um verdadeiro assassinato/extermínio em massa (envolvendo um milhão e meio de pessoas) patrocinado por poderes centralmente estabelecidos; “Museu do Genocídio” documenta, cabal, ampla e impressionantemente, os factos e o seu enquadramento (que aqui não abordarei por óbvias razões de espaço e competência) – assinale-se que o Parlamento alemão aprovou, há pouco mais de um ano, uma resolução que reconhece como genocídio o massacre de arménios cometido pelo Império Otomano (atual Turquia), bem como a responsabilidade da Alemanha no mesmo, visto que era aliada daquele Império no decorrer da I Guerra Mundial (na Turquia quaisquer referências ao assunto continuam a ser artificialmente abafadas e brutalmente reprimidas). De entre os milagrosos sobreviventes do martírio, salientem-se os nomes de Aurora Mardiganian (que dá o nome ao museu e cuja vida foi por si relatada em livro e tema central de um filme a procurar, “Ravished Armenia”) e do fabuloso compositor Komitas, alguém que inquestionavelmente mereceria ser melhor conhecido do grande público ocidental.



Dito tudo isto que tenho vindo a dizer, hoje e noutros dias: a Arménia é um país de boa e afável gente, fortemente marcada pelas vicissitudes da História e hoje crescentemente escondida atrás de um nacionalismo passadista e de uma inabalável fé cristã. De entre os seus heróis viáveis, o domínio vai para xadrezistas (Garry Kasparov, considerado o melhor jogador de sempre, tinha mãe arménia, o atual mestre Levon Aronian é um herói nacional frequentemente apelidado de “David Beckham do xadrez” e segue as pisadas de um idolatrado ex-campeão dos anos 60, Tigran Petrosian, e o xadrez é uma disciplina de ensino obrigatório nas escolas e liceus!) e um jogador de futebol do Manchester United do nosso Mourinho (Henrikh Mkhitaryan) que custou 42 milhões de euros após ter brilhado previamente no Shakhtar Donestsk e no Borussia de Dortmund. Ah, e está por lá também difundida a ideia de que a cabeça de S. João Baptista apareceu ali, mais concretamente em Nagorno-Karabakh (a terminação lê-se num erre aspirado, parecido mas bem mais suave do que o erre carregado de Passos Coelho). Se tivesse de definir a Arménia numa palavra só, escolheria karot para assim exprimir aquele vago e misto sentimento de perda e saudade...

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