Difícil, muito difícil mesmo, vivenciar uma experiência musical ao vivo como aquela que me foi proporcionada ontem à noite no Campo Pequeno de Lisboa por Benjamin Clementine e seus acompanhantes. O talento e a qualidade andaram ali à solta, entre o evidente domínio instrumental dos executantes e a inigualabilidade e versatilidade da voz e da exploração dos temas por parte do protagonista, junto com a sua simpática e contagiante presença em palco e fora dele.
Dito isto, tenho de me aceitar que serei suspeito na medida em que não passo de um mero apreciador e consumidor e não de um especialista da matéria. Por tal razão, peço licença ao leitor para aqui lhe deixar um pequeno texto que tem autoria de quem melhor sabe (a jornalista Lia Pereira do “Blitz”) e que me permite a assim me limitar a assinar por baixo. Intitulado “Como era a vida antes de Benjamin Clementine? Os portugueses já não se recordam – e são felizes assim”, o dito começa com o seguinte header: “No seu 13º concerto em Portugal, um dos aliens favoritos do público nacional fez um pouco de tudo – incluindo passear-se pela plateia e pelas bancadas. Retrato de um artista em permanente reconstrução, que esta noite emocionou o Campo Pequeno, em Lisboa.” Reproduzo, então, com a devida vénia:
“’Sim, eu sei que é estranho. Mas não há problema em ser estranho. É bom ser diferente’. É Benjamin Clementine quem o diz, quando, num dos momentos mais inesperados do concerto de sexta-feira no Campo Pequeno, em Lisboa, desata a dançar com um dos manequins que ocupam o palco, enquanto com dramatismo repete parte da letra de uma das suas canções mais recentes: ‘one turkish boy, one turkish boy’. O público exulta com a defesa do direito à extravagância e a temperatura da sala, ao contrário da que se faz sentir na rua, mantém-se elevada.
Benjamin Clementine, nascido há 29 anos em Londres, adotado por Portugal há coisa de três, já pode com toda a propriedade chamar casa aos palcos nacionais. Quando, pouco antes das dez da noite, se apresenta frente a uma plateia a abarrotar, recebe uma ovação capaz de arrepiar os mais experientes nestas andanças. Qual filho pródigo, é recebido em êxtase e, perfeitamente icónico no seu xaile branco de flores rubras, curva-se e ajoelha-se para mostrar devoção pelo palco que pisa - e por todos os que, esta noite, se deslocaram ao Campo Pequeno para presenciar aquele que foi o seu 13º concerto em Portugal.
O talentoso senhor Clementine, recorde-se, só tem dois álbuns lançados, e mostra saber que um deles fala mais alto aos ouvidos dos fãs. ‘Estamos a tentar misturar o novo com o antigo, mas sei que vocês estão aqui pelas canções antigas’, reconheceu. Antigas, para o britânico, são as canções incluídas em ‘At Least For Now’, o debute de 2015. E, de facto, tanto ‘London’ como ‘Nemesis’, ‘Condolence’ ou ‘Adios’ causam comoção generalizada no Campo Pequeno. Mas, não obstante a sua natureza mais complexa e experimental, ‘I Tell a Fly’, editado no final do ano passado, também empresta à noite de sexta alguns momentos de glória, via ‘Jupiter’, ‘By The Ports of Europe’ ou ‘God Save The Jungle’.
Foi, de resto, com este tema que o concerto teve começo. Rodeado por uma pequena banda de três músicos e muitos manequins algo sinistros, Benjamin Clementine muniu-se do piano e da sua voz imperial para, com segurança máxima, se lançar em voos vertiginosos. Qual gato que cai sempre de pé, continua a impressionar pela forma como, mostrando uma elasticidade vocal olímpica, consegue evitar a armadilha do exibicionismo.
Em cada canção, o homem de ‘Farewell Sonata’ alterna agilmente entre vários registos: o mais canónico, dos ‘livros’, que lhe vale comparações a lendas como Nina Simone; a liberdade do improviso, que lhe parece oferecer grande prazer, e a teatralidade e excentricidade, tanto de cena como musical.
Se com o seu primeiro álbum acabou por cair na categoria de singer songwriter inspirado pelos blues/folk e pelo jazz, nesta fase da sua carreira Benjamin Clementine é um artista em permanente reconstrução, tentando fazer coexistir essa sua veia, perfeitamente aperfeiçoada, com uma ideia de rock quase sinfónico, por vezes cacofónico, outras na vizinhança de algum jazz. A unir estas pontas está o talento imenso do nosso anfitrião não só para a interpretação como para a performance – percorrendo a frente do palco descalço, destruindo manequins de plástico ou percorrendo a plateia e as bancadas com a sua banda atrás, Benjamin Clementine é como aqueles amigos que entraram na nossa vida – ou nós na deles – por mero acaso, e não há tantas luas como isso, mas que se entranharam de tal forma nos nossos dias que já nos é complicado recordar-nos da nossa vida sem eles.
Além de uma banda trajada com a mesma espécie de fato-macaco que o seu ‘patrão’, o inglês contou também, na partilha das suas histórias de superação, com a ajuda ocasional de uma secção de cordas. Mas, ainda que violinos e violoncelos tenham ajudado a carregar ainda mais no dramatismo das canções, Benjamin Clementine, sozinho com aquela voz, chegaria bem para levar o barco a seu porto: assim foi em ‘I Won't Complain’, tema do primeiro disco que guiou o público ao delírio, ou na obrigatória ‘Condolence’. Se, no histórico concerto de Paredes de Coura, no ano passado, a canção de 2015 se transmutou num momento praticamente litúrgico, esta noite mostrou-se celebratória, extática. E era esta a música que, no regresso a casa, alguém recordava em vídeo, tocado a partir do seu smartphone na estação de metro...
Dizendo-se um alien (literalmente, na letra da aplaudida ‘Jupiter’), Benjamin Clementine entrou em palco um príncipe e saiu um rei. Gongórico e comovente, excessivo e absurdo, é um predestinado que se diverte a explorar as suas bênçãos com um público que vibra por estar na sua presença. Despediu-se com a literal ‘Adios’, costurada com novas bainhas, e um blues à guitarra escrito após o ataque numa discoteca de Orlando. Voltará, e a próxima vez já em julho. Portugal não vai largar-lhe a mão.”
E, acrescento eu, com a bandeira nacional às costas...