(O estado preocupante de conservação de alguns troços de
caminho de ferro não resulta apenas da consolidação orçamental abrupta em curso
já há alguns anos, é também e sobretudo o resultado de opções
erradas de valorização desmedida e desequilibrada do transporte rodoviário,
cuja origem convém explicar)
Ontem, numa
viagem de automóvel para Lisboa, determinada pela greve dos trabalhadores da
Infraestruturas de Portugal, dei comigo a pensar, enquanto ouvia a Antena 2 para
compensar a tensão da viagem e de uma entrada infernal em Lisboa, em matérias
que curiosamente o Público de hoje trata com grande centralidade.
Pensava eu
que é em dias como o de ontem que podemos valorizar a importância de uma
ligação de caminho-de-ferro de qualidade, cómoda, rápida quanto baste e que dê
oportunidade de aproveitamento útil do tempo enquanto se viaja. É claro que a
malta mais nova já encontrou formas de aproveitamento de viagens de automóvel.
É o caso dos Podcasts académicos que proliferam com qualidade na NET e que o
meu filho Hugo usa nas viagens de automóvel entre Porto e Aveiro.
Enquanto
pensava nesta matéria, claro que respiguei argumentos e informações que me
foram chegando ao longo do tempo e que me foram dando conta de situações preocupantes
de conservação de linhas férreas ou de troços delas e que são abundantemente
citadas na reportagem do Público. Cito dois casos. O caso da linha do Douro é o
exemplo mais vivo de um mau centralismo que não consegue perceber o
elevadíssimo potencial turístico de uma região como o Douro para processos de
mobilidade mais sustentável. A péssima qualidade de equipamentos e a agora
reconhecida baixa qualidade de conservação da linha são um exemplo do mais puro
e vivo desrespeito por cidadãos residentes e turistas. O outro caso é o da
baixa segurança de troços com grande pressão de utilização de diferentes tipos
de comboios como o é da ligação entre Porto e Aveiro, mais propriamente de
Porto a Ovar.
Querer
circunscrever o estado calamitoso a que se chegou nesta matéria a problemas de
consolidação orçamental abrupta e, mais maliciosamente, às cativações, que são
para a direita em Portugal o equivalente da austeridade em tempo de vacas menos
magras, significa esquecer o peso de decisões assumidas lá para trás em matéria
de alocação de recursos públicos. A desvalorização do transporte ferroviário,
em termos de balanceamento com a modernização infraestrutural rodoviária de que
o país necessitava, representa uma das historicamente mais pesadas decisões
assumidas no país. E diga-se sem receio que essas decisões foram amplamente
validadas com respaldo político e eleitoral de sucessivos governos que não
esconderam essa desvalorização. Ou seja não pode dizer-se que os Portugueses
não tenham sido informados de tal opção. Ela não foi do tipo one shot. Foi sistematicamente reiterada
em sucessivos períodos de programação de Fundos Estruturais e, ironia das
ironias, foram os ecos em Bruxelas de algumas dúvidas internas que determinaram
a interrupção de tal trajetória. Claro está que tal aconteceu num contexto
fortemente penalizador em que as questões da programação da conservação
plurianual não estão devidamente acauteladas. Ou seja, um círculo trágico em
que começa a ser revelada a inexistência de problemas de segurança pelo
aviltamento e desvalorização do transporte ferroviário.
Pode
entretanto perguntar-se de que modo podemos associar este estado de coisas aos
efeitos do modelo de alocação de recursos que favoreceu as infraestruturas, o
imobiliário e os não transacionáveis em geral? Não é verdade que o transporte
ferroviário não é também um setor de infraestruturas? É um facto, mas também me
parece que o lobby do transporte
rodoviário sempre foi mais forte e esteve sempre mais ligado ao coração do
modelo que determinou a exaustão do crescimento em Portugal na década de 2000.
Basta percorrermos os personagens principais das PPP rodoviárias para
compreendermos essa relação umbilical. No desconhecimento dos eleitores
portugueses? Não me parece. Antes pelo contrário, com o seu consentimento e
aprovação implícitos.
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