terça-feira, 6 de março de 2018

E DEPOIS DE BERLUSCONI, O DILÚVIO?

(Os resultados dos círculos uninominais em Itália)


(O rescaldo das eleições italianas e dos seus resultados mostra bem como a avaliação de alguns analistas que viram a relativa acalmia dos mercados na antecâmara do dilúvio eleitoral como um indicador de que a situação estava controlada foi precipitada. Não, não estava e agora os diferentes cenários que podem, racionalmente, ser antecipados, apontam para a incerteza dinâmica mais profunda.

De facto, houve quem pensasse que os mercados estavam a viver confortavelmente o pré-dilúvio, não só porque o BCE de Draghi (um italiano influente) faria “tudo o que fosse necessário”, mas também porque lá bem no fundo se admitia que uma coligação entre o PD de Renzi e a Forza Itália de Berlusconi, sobretudo com Trajani com as rédeas da governação, aguentaria os cavalos, não se sabe por quanto tempo.

Mas todos sabemos que os italianos são gente indisciplinada e com uma propensão intrínseca para o voto de protesto. E tantas vezes o cântaro ameaçou partir-se, que partiu mesmo e com estrondo. Quase 60% de votos de protesto antissistema, eurocético e quase a roçar a possibilidade de gerar um dilúvio europeu é obra, uma espécie de linha mais grossa e negra de uma crónica anunciada e já em movimento. Além disso, são resultados muito consistentes a vários níveis: (i) similaridade entre a distribuição dos votos uninominais e partidários; (ii) similaridade entre a distribuição de votos para o Senado e para a Câmara (Parlamento); (iii) e uma geografia eleitoral que não engana ninguém, cristalina, já objeto do meu post anterior. A fábula do Berlusconi redentor e tampão (salvo seja) do populismo mais perigoso caiu em desgraça. Aquela retirada pela porta baixa da mesa de voto quando a ativista feminista o confrontou de seios descobertos anunciou para mim uma espécie de saída de cena sucumbido ao peso da onda em curso.

Enquanto Renzi irá carpir as mágoas e tentar a sua sobrevivência política, equacionam-se as alternativas de governabilidade. Recomendo-vos a leitura atenta de um artigo do Financial Times, que representa para mim a mais completa e interessante busca dos cenários possíveis, procurando antecipar o racional do Presidente Mattarella (artigo de James Politi, com link aqui).

O FT considera quatro cenários possíveis, cada qual com mais escolhos. Desconheço qual poderá ser o poder de enforcement do Presidente ou se, pelo contrário, a sua missão está já minada pelos 60% de voto de protesto antissistémico.

O primeiro cenário abrange a coligação ou acordo de governo entre a vidairada populista e de extrema-direita: 5 Estrelas + Lega + Fratelli d’Itália. Um saco de gatos cada qual com as garras mais afiadas e mais fome de sangue. Neste cenário, devemos distinguir uma aproximação entre as cúpulas dirigentes (o cheiro do poder permite muita coisa) do confronto aberto entre as bases, com incidências territoriais marcantes.

O segundo cenário colocaria o 5 Estrelas fora do poder (nos tempos iniciais do movimento talvez não o desdenhasse), mas o seu líder atual Di Maio tem o olfato muito apurado. O arranjo seria: Lega + Partido Democrático. Muito sinceramente, se o PD está moribundo, poderia começar a encomendar o funeral.

O terceiro cenário, que Politi designa de viragem à esquerda, obrigaria a que o 5 Estrelas se inclinasse para a esquerda (um populismo de esquerda não é de todo impossível. O arranjinho envolveria: 5 Estrelas + Partido Democrático + Liberi Uguali (de Massimo Alema, Bersani e do juiz Pietro Grasso). O 5 Estrelas está longe de ser um PODEMOS. Não acredito nesta possibilidade. O lamber das feridas do PD será incompatível com uma participação na governação.

Finalmente, poderíamos ter um cenário de tudo a monte e fé no diabo. Todos ao molhe.

Face a este descalabro, estou como o outro. Só faço prognósticos no fim do processo.

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