quarta-feira, 14 de março de 2018

A CARTA DE AMÉRICO MENDES



(Para quem conhece de perto os fundamentos do pensar a floresta do Professor Américo Mendes, a carta aberta a quem tem o dever de conduzir os destinos do país não traz substancialmente nada de novo. Mas a sua redação é notável de clareza para um modelo de política pública. É na correta perceção destes fundamentos que os golpes de asa da governação são possíveis)

A carta aberta a Marcelo e a Costa que o amigo Professor Américo Mendes (Universidade Católica – Porto) escreve no Público de hoje (link aqui) sobre a reforma da floresta é um documento precioso de rigor, frontalidade e de fundamentos para uma viragem na política pública. Os argumentos e fundamentos que a orientam não são novos para quem conhece o pensamento do AM e o tem ouvido e lido sistematicamente nas diferentes oportunidades e contextos em que tem ele tido a oportunidade de o fazer. É um pensamento de quem tem os conceitos apurados, a abordagem rigorosa e sobretudo o conhecimento do terreno em matéria florestal (liderança de uma associação de produtores florestais). Não é por isso a posição de quem vê na floresta apenas um objeto de investigação. É mais do que isso.

A carta aberta é relevante pois coloca aos dois personagens políticos portugueses de momento algo que provavelmente os seus ministros e assessores mais próximos não têm tido a inteligência ou a abertura para colocar, assim, preto no branco, sem nuances. Não estou a insinuar que as duas personalidades políticas de momento estejam rodeadas de gente especializada em emitir os fundamentos que os masters pretendem ouvir. Não, longe disso. Mas interrogo-me se já passou pela secretária dos ditos algo de tão concreto e incisivo.

Quatro pontos fundamentais:

  • Só 2% da floresta nacional é pública e mesmo está desorganizada e não devidamente arrumada; ou seja, 98% da floresta depende de comportamentos e investimentos estritamente individuais;

  • Neste contexto, a governação não pode ignorar os incentivos que decorrem da governação e a sua influência nos tais comportamentos e investimentos individuais;

  • O nível associativo é por demais relevante para criar dimensões de racionalidade coletiva;

  • A floresta é já há algum tempo um caso típico de atividade em que a rendibilidade privada é negativa e a rendibilidade social positiva, ou seja as externalidades que a floresta gera são manifestamente positivas.

Perante este contexto incontornável, a governação tem:

  • Ignorado e desvalorizado o seu papel na promoção e garantia das externalidades sociais positivas, não investindo nessa medida;

  • Legislado como se a proporção não fosse 98% privado e 2% público, mas antes 98% público e 2% privado;

  • Menosprezado as especificidades territoriais;

  • Fugido a sete pés de uma gestão adequada dos incentivos para os produtores florestais, como se para um governo socialista ou de esquerda falar de incentivos fosse pecado ou traição a qualquer coisa que não me ocorre qual possa ser;

  • Adiado sistematicamente dotar o associativismo florestal dos apoios necessários para que a racionalidade coletiva se imponha, agravado por não considerar as especificidades territoriais e as configurações e potencial diferenciados desse mesmo associativismo.

A carta de Américo Mendes fornece elementos abundantes destas falhas de governação e por isso, deve ser lida.

Algum assessor ou ministro tem consciência clara desta realidade?

Sinceramente e sem desprimor para ninguém, duvido.

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