sábado, 24 de março de 2018

BIG BAD ANALYTICA



(Muito se escreveu já sobre as obscuras ligações entre o Facebook, a Cambridge Analytica, a campanha de Trump e sabe-se lá mais o que andará por aí oculto. O valor da privacidade é hoje fonte de um confronto geracional e cultural e nesse campo há imensa literatura relevante que podemos revisitar. O post de hoje recupera uma curiosa abordagem ao tema pela inspiração permanente de Gillian Tett e tem a globalização na sua origem. Por isso a retenho.)

Considero nesta matéria que a questão central é de facto a que Pacheco Pereira não se tem cansado de trazer para o centro da reflexão, a perda civilizacional em torno da defesa da privacidade, que se vai morbidamente esbatendo entre muitos setores da sociedade, provavelmente como reflexo de uma solidão incomensurável. Outra questão bem menor na sua importância e alcance é o “luditismo digital” que vai grassando por aí, como meio de restituição da nossa liberdade. Não comungo essa perspetiva. O Facebook e as redes sociais em geral, os big data e as formas mais sofisticadas do seu tratamento que pelos vistos empresas como a Cambridge Analytica dominam na perfeição estão como outras formas de conhecimento científico e manifestações tecnológicas sempre sujeitas a uma utilização potencialmente dual – virtuosa e favorável ao bem comum e malévola causadora das maiores atrocidades. Exemplos simples ajudam-nos a compreender essa dualidade incontornável. As TIC e os gadgets tecnológicos que as utilizam tanto podem ser poderosos instrumentos pedagógicos como formas máximas de dependência e negação do desenvolvimento intelectual. Certamente que o gás mortífero que terá causado quase a morte criminosa ao ex-espião russo e filha em Salisbury – Londres resultará de uma descoberta científica qualquer que poderia ter aplicações e altruístas do que a andar a despachar ex-expiões ou traidores da Grande Rússia. A ambivalência do conhecimento e da tecnologia é provavelmente tão velha como a própria humanidade e por isso a utilização ilegal e criminosa de bases de dados apropriadas pelo Facebook em troco do serviço gratuito prestado cai nessa ambivalência. O que se perfila aí com a Internet das coisas fará provavelmente fazer o Facebook parecer um brinquedo inofensivo.

O artigo de Gillian Tett no Financial Times (link aqui) busca como não poderia deixar de ser outras dimensões e o que me atraiu foi a invocação da globalização. Na verdade, Tett tem razão quando mostra que a globalização proporcionou a empresas como a Cambridge Analytica uma poderosa oportunidade de levar as operações de data mining a dimensões nunca antes vistas. Atentem nesta síntese esclarecedora: “o que a Cambridge Analytica andava a fazer era trabalhar dados extravasando fronteiras para servir clientes em diferentes jurisdições legais, para lá da atenção ou controlo de qualquer governo nacional”.

Desconhecia o facto da Cambridge Analytica ser uma empresa de base americana, a que não será estranho o facto da legislação americana conceder menor proteção à privacidade do consumidor do que a legislação europeia. Esse facto terá dificultado a concretização de ações judiciais animadas por um professor americano, David Carroll, que tinha já identificado há algum tempo as manobras menos claras da Cambridge Analytica junto do Facebook. Mas a empresa americana tem uma empresa de controlo de dados, sua associada, SCL Elections, que tem base no Reino Unido e foi nessa base que Caroll desenvolveu as primeiras ofensivas judiciais contra a empresa americana, à qual se sucederam ofensivas idênticas a partir dos EUA. É isto que Tett sublinha mostrando que a globalização deu asas à empresa mas a mesma globalização pode coloca-se no seu sítio.

Não deixa de ser curioso que o caso da Cambridge Analytica tem algo de inverso relativamente ao caso da fraude das emissões nas viaturas da Volkswagen. Aí foi no âmbito da jurisdição americana que a ofensiva de responsabilização da empresa alemã começou, só depois acontecendo na Europa, precisamente o contrário da Cambridge Analytica.

Moral da história: não é o determinismo que comanda estes processos mas a tensão entre as forças da ambivalência. Mas nem sempre ganha o bom da fita.

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