(Muito se escreveu já sobre as obscuras ligações entre o
Facebook, a Cambridge Analytica, a campanha de Trump e sabe-se lá mais o que
andará por aí oculto. O valor da privacidade é hoje fonte de um
confronto geracional e cultural e nesse campo há imensa literatura relevante
que podemos revisitar. O post de hoje recupera uma curiosa abordagem ao tema pela
inspiração permanente de Gillian Tett e tem a globalização na sua origem. Por
isso a retenho.)
Considero
nesta matéria que a questão central é de facto a que Pacheco Pereira não se tem
cansado de trazer para o centro da reflexão, a perda civilizacional em torno da
defesa da privacidade, que se vai morbidamente esbatendo entre muitos setores
da sociedade, provavelmente como reflexo de uma solidão incomensurável. Outra questão
bem menor na sua importância e alcance é o “luditismo digital” que vai
grassando por aí, como meio de restituição da nossa liberdade. Não comungo essa
perspetiva. O Facebook e as redes sociais em geral, os big data e as formas mais sofisticadas do seu tratamento que pelos
vistos empresas como a Cambridge
Analytica dominam na perfeição estão como outras formas de conhecimento científico
e manifestações tecnológicas sempre sujeitas a uma utilização potencialmente dual
– virtuosa e favorável ao bem comum e malévola causadora das maiores
atrocidades. Exemplos simples ajudam-nos a compreender essa dualidade incontornável.
As TIC e os gadgets tecnológicos que as utilizam tanto podem ser poderosos instrumentos
pedagógicos como formas máximas de dependência e negação do desenvolvimento
intelectual. Certamente que o gás mortífero que terá causado quase a morte criminosa
ao ex-espião russo e filha em Salisbury – Londres resultará de uma descoberta
científica qualquer que poderia ter aplicações e altruístas do que a andar a
despachar ex-expiões ou traidores da Grande Rússia. A ambivalência do conhecimento
e da tecnologia é provavelmente tão velha como a própria humanidade e por isso a
utilização ilegal e criminosa de bases de dados apropriadas pelo Facebook em
troco do serviço gratuito prestado cai nessa ambivalência. O que se perfila aí
com a Internet das coisas fará provavelmente fazer o Facebook parecer um brinquedo
inofensivo.
O artigo de
Gillian Tett no Financial Times (link aqui) busca como não poderia deixar de ser outras
dimensões e o que me atraiu foi a invocação da globalização. Na verdade, Tett
tem razão quando mostra que a globalização proporcionou a empresas como a Cambridge Analytica uma poderosa
oportunidade de levar as operações de data
mining a dimensões nunca antes vistas. Atentem nesta síntese esclarecedora:
“o
que a Cambridge Analytica andava a fazer era trabalhar dados extravasando
fronteiras para servir clientes em diferentes jurisdições legais, para lá da
atenção ou controlo de qualquer governo nacional”.
Desconhecia o
facto da Cambridge Analytica ser uma empresa de base americana, a que não será
estranho o facto da legislação americana conceder menor proteção à privacidade
do consumidor do que a legislação europeia. Esse facto terá dificultado a concretização
de ações judiciais animadas por um professor americano, David Carroll, que tinha
já identificado há algum tempo as manobras menos claras da Cambridge Analytica
junto do Facebook. Mas a empresa americana tem uma empresa de controlo de
dados, sua associada, SCL Elections, que
tem base no Reino Unido e foi nessa base que Caroll desenvolveu as primeiras ofensivas
judiciais contra a empresa americana, à qual se sucederam ofensivas idênticas a
partir dos EUA. É isto que Tett sublinha mostrando que a globalização deu asas à
empresa mas a mesma globalização pode coloca-se no seu sítio.
Não deixa de
ser curioso que o caso da Cambridge Analytica tem algo de inverso relativamente
ao caso da fraude das emissões nas viaturas da Volkswagen. Aí foi no âmbito da
jurisdição americana que a ofensiva de responsabilização da empresa alemã
começou, só depois acontecendo na Europa, precisamente o contrário da Cambridge
Analytica.
Moral da
história: não é o determinismo que comanda estes processos mas a tensão entre
as forças da ambivalência. Mas nem sempre ganha o bom da fita.
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