segunda-feira, 26 de março de 2018

O OUTPUT GAP SOB FOGO

(Reino Unido - Produto potencial (encarnado) e produto efetivo (azul)

(Embora pareça um assunto excessivamente técnico, o conceito de output gap ou desvio de produto é bem mais importante do que parece para a vida económica corrente, pois está na base de medidas de políticas económica e monetária que afetam a vida de muita gente. Por isso, toda a controvérsia que se abata sobre conceito em si e sobre a sua métrica é matéria relevante e não academicamente exotérica.)

Comecemos por uma apresentação despretensiosa para não economistas do conceito. Para qualquer ano de referência (um período porque o produto é um fluxo e precisa de tempo para ser gerado), podemos falar de dois produtos (PIB) para uma dada economia. O produto efetivo e o produto potencial. O primeiro não tem que saber, é o produto efetivamente gerado nesse período, medido por qualquer um dos métodos disponíveis na contabilidade nacional. O produto potencial corresponde ao produto máximo que a economia poderá nesse mesmo período gerar acaso todos os recursos fossem plenamente aproveitados. Numa linguagem de curto e longo prazo, o produto efetivo é o produto de curto prazo que a economia gera com todas as imperfeições de utilização de recursos. O produto potencial é o que corresponde à evolução tendencial da economia no longo prazo e há economistas que lhe atribuem uma outra característica, seria o produto com capacidade para manter a inflação constante. Ambos têm problemas de medida. O produto efetivo tem os problemas conhecido de medida do produto, já que nem todas as componentes do mesmo correspondem a grandezas com preços de mercado. Por exemplo, pode ser necessário estimar o autoconsumo das famílias. São problemas de medida menores do que os do produto potencial. Medir uma tendência não é coisa fácil, bem como estimar o que é isso de máximo aproveitamento dos recursos. Quer isso significar que entra ao barulho a econometria e por isso entramos em matéria equivalente à das letras pequeninas dos contratos.

O que é então o output gap (desvio de produto)? O desvio de produto é para cada ano a diferença entre o produto efetivo da economia e o seu produto potencial.
Se o OG for >0 isso significa que a economia está a crescer nesse ano acima da sua tendência de longo prazo. Muitos economistas associam essa situação a um contexto potencialmente inflacionista. Se, pelo contrário, o OG <0, isso significa que a economia cresce com subutilização dos seus recursos, correspondendo normalmente a uma recessão. Por exemplo, sabemos que as políticas de austeridade atiraram o OG das economias intervencionadas para valores significativamente negativos, obrigando as economias a desperdiçar recursos, particularmente de mão-de-obra durante largo tempo.

Vislumbramos aqui, desde logo, uma importante aplicação do OG com reflexos nas nossas vidas. O OG é uma espécie de variável de antecipação de efeitos inflacionistas, gerando consequentes adaptações de política. Mas na nomenclatura europeia a influência do OG é mais vasta. Está na base e influencia o valor do défice estrutural que é calculado em função do produto potencial das economias. Isto bastaria para perceber a estupidez de colocar num tratado europeu um conceito cuja métrica tem muito que se lhe diga. Não se trata de rejeitar um conceito. Ele é relevante e até intuitivo. Mas a sua métrica não o é e está longe de estar tecnicamente estabilizada. Por isso, só por orientação premeditada e, por isso, criticável faz sentido inclui-lo num tratado, o Tratado Orçamental.

Não estranha por isso que o conceito esteja sob o fogo da crítica. Não me interessam por agora as sucessivas reformulações que a métrica tem experimentado do ponto de vista econométrico para calcular o produto potencial. Por hoje, interessa-me trazer ao vosso conhecimento a crítica que Simon Wren-Lewis (link aqui) constrói do conceito, apresentando-o como uma má medida das pressões inflacionistas de uma dada economia. Wren-Lewis é hoje um dos mais estimulantes macroeconomistas contemporâneos e o seu MAINLY MACRO é uma peça de consulta obrigatória para uma visão mais abrangente e debatida do estado da arte da macroeconomia contemporânea, sobretudo após a Grande Recessão de 2007-2008.

Trabalhando essencialmente sobre a economia britânica, Wren-Lewis desconstrói a contradição das estimativas macro do Reino Unido que o colocam acima do produto potencial, isto é com OG >0 e, apesar disso, a pressão inflacionária parecer ausente.

A explicação de Wren-Lewis é engenhosa e creio que bastante robusta. Sabemos que a recuperação das economias no pós-2007-2008 foi lenta, senão por vezes agónica. Entretanto, a evolução do progresso técnico (inovação), mesmo que provavelmente retardada, não parou. A acumulação de conhecimento- inovação tecnológica acaba por gerar um gap de inovação. Ele não é mais do que o potencial aumento de produtividade que a aplicação das inovações disponíveis permitiria acaso a recuperação não fosse tímida e a incerteza que, regra geral, acompanha evoluções dessa natureza, não bloqueasse algumas decisões de investimento. Se isto for verdade, quando a recuperação se torna mais efetiva, a pressão sobre os recursos deparará durante algum tempo com um potencial de inovação não aproveitado. Isto significa que as pressões inflacionistas tenderão a experimentar elas próprias um “lag” de manifestação, podendo mesmo não se manifestar se entretanto ocorrer mais alguma tensão recessiva. Um OG >0 não é mais uma medida das pressões inflacionistas.

Wren-Lewis não discute em que medida esta questão poderia ser um não-problema. Um não-problema? Sim, porque em teoria o produto potencial de uma economia deveria medir o produto máximo da mesma com pleno aproveitamento de recursos, não apenas do trabalho e capital disponíveis mas também do conhecimento-inovação entretanto produzido. O problema é que o conhecimento-inovação não se traduz imediatamente em novo capital, material ou imaterial. Exige investimento para a sua transformação no mercado e esse investimento pode ser adiado por uma recuperação agónica. Por isso, o produto potencial nunca consegue medir o aproveitamento inovação e daí que o OG não o possa refletir.

Como referi, o argumento não deixa de ser robusto pelo facto de ser engenhoso. É mais uma razão para que os economistas não endeusem o OG e sobretudo não façam dele um instrumento de punição macroeconómica preventiva. É uma questão de humildade que, regra geral, as “masters voices” não cultivam. Toda a vigilância é pouca.

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