sexta-feira, 16 de março de 2018

UMA PERSPETIVA MACRO DA GERINGONÇA




Teodora Cardoso usou todo o seu profissionalismo para apresentar em público a sua mais recente perspetiva macroeconómica sobre a economia portuguesa e o estado das finanças públicas. Não pestanejou nem mostrou qualquer azedume quando situou o défice público em 2017 em torno de 1% do PIB, anunciou que pela primeira vez esse mesmo défice ficaria abaixo de 1% em 2019 e até nas previsões do CFP aparece um desconcertante excedente das contas públicas em 2020. Previsões não são mais do que isso. Sabemo-lo bem, assim como sabemos que nunca como hoje há a todo o momento revisão de estimativas. Mas na sua intervenção, Teodora Cardoso não se eximiu de referir os sinais positivos da mudança no processo de alocação de recursos, assim como chamou também a atenção para a oportunidade que se abre na administração pública com a passagem à reforma de funcionários com vencimentos elevados.

É esta última dimensão do desempenho macroeconómico que me interessa hoje desenvolver. Chamei a tal pretensão uma perspetiva macro da geringonça.

Comecemos pelo princípio. É conhecido que entre o modelo macroeconómico que o grupo de economistas com Mário Centeno e Paulo Trigo Pereira à cabeça elaborou para suportar o programa do PS e a governação macroeconómica efetiva que a geringonça acabou por promover há diferenças. O modelo macroeconómico inicial pretendia mostrar, por argumentação ad contrario, que era possível fazer melhor do que o ajustamento da Troika. Não esquecer, entretanto, que o vício trágico da Troika foi admitir que a sua receita se pode aplicar em qualquer momento de mercado mundial. Para poder fazer melhor, o modelo macro inicial tinha de atribuir ao fortalecimento da procura interna uma outra relevância, já que isso era fundamental para repor uma dinâmica mínima na economia, tão atingida que fora pela ideia peregrina de que a destruição do Portugal arcaico significa destruir tudo o que vivesse essencialmente para o mercado interno. De facto, houve gente que quis ser mais “troikeira” do que a origem e assim se comportou.

Recordo-me perfeitamente que, na altura, fiz-me eco de algumas reservas quanto à possibilidade de conduzir uma estratégia macroeconómica virtuosa assente exclusivamente na alavanca da recuperação dos níveis da procura interna. Mas ao contrário de alguns “tolinhos do nosso mainstream económico”, expliquei na altura que o fortalecimento da procura interna e a recuperação dos setores em destruição desproporcionada e precoce tinham um papel estratégico fundamental a desempenhar como estratégia de transição. Transição entre quê e para onde? Uma estratégia de transição entre uma aposta desmedida, desproporcionada e cega de desvalorização interna que, sem regulação, pode matar o paciente, para um modelo de afetação de recursos em que os transacionáveis representem duradoura e sustentadamente o elemento motor do crescimento.

Ora, a geringonça, ao gerar uma situação macro revitalizada com a recuperação dos níveis de consumo privado, assente nas reposições de rendimentos e direitos, proporcionou essa transição de procura interna, dando tempo a que o investimento público possa lentamente recuperar e sobretudo tempo às empresas para repor capacidade produtiva focadas nos mercados externos. Hoje, como aliás Teodora Cardoso o sublinhou, já não é o consumo privado a sustentar a dinâmica de crescimento, mas antes as exportações e a uma articulação mais virtuosa com o investimento privado e público também. Ninguém praticamente no mainstream compreendeu a virtuosidade desta transição. E, ao contrário dos que nela viram a encarnação do diabo, desempenhou exatamente o papel contrário, a de anjo suavizador de uma transição que haveria de revelar-se virtuosa.

Mas esta conclusão tem também implicações para a geringonça. O que se revelou capaz de assegurar uma transição inimaginável para os mais troikeiros do que a própria Troika não pode ser facilmente reeditada como estratégia macroeconómica sustentada. E esse é também um desafio para a governação à esquerda. As empresas, essas, continuarão a desempenhar o seu papel.

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