sexta-feira, 23 de março de 2018

OS DOIS TEMPOS DA POLÍTICA



(Está escrito que este governo dificilmente poderá esquecer a questão dos incêndios florestais de junho e outubro de 2017, representando a dimensão mais crítica da sua governação, globalmente muito positiva. Os novos danos colaterais suscitados pelo 2º Relatório da Comissão Técnica Independente e a celeridade com que a época de verão se aproxima dão-nos conta que a política se processa a dois tempos, desfasados um do outro e nada bom para a perceção da ação política)

É verdade que as questões e desencontros do SNS têm ocupado a atenção dos últimos tempos. Mas, tal como já tive oportunidade neste espaço de o sublinhar, tenho para mim que o tom como a comunicação social trata os desabafos naturais de quem sente na sua pele ou na dos seus as desconformidades e ineficiências do SNS não chegam para apagar a perceção que os portugueses têm que, no confronto europeu e face ao nosso nível de desenvolvimento, o nosso SNS faz alguns milagres. É por isso que os fogos florestais e as suas trágicas consequências humanas, materiais e territoriais constituirão a espinha na garganta do governo por mais decidida e agressiva que for a resposta até ao fim da legislatura. Como é óbvio, uma boa campanha de verão com tudo a responder na hora e a cumprir o seu papel poderá mitigar essa espiga. Não é essa questão que hoje me interessa tratar. A pressão dos acontecimentos está a puxar a governação para a concretização de resultados a curto prazo, que não é o contexto mais favorável a uma boa governação. O melhor exemplo, e partilho esta ideia com o especialista e amigo Américo Mendes, é a limpeza de matas e florestas. A opção seguida pelo Governo embora possa revelar-se eficaz na ótica do curto prazo não é a mais adequada para reforçar e capacitar o envolvimento da sociedade civil, que é afinal o melhor indicador do desenvolvimento,

No diz-se que se diz jornalístico, vieram hoje a público possíveis receios de Marcelo quanto ao estado das coisas em termos de grandes mudanças estruturais em relação à floresta. As notícias divulgadas apontam para que o Presidente tenha já dado de barato que nada de substancial vai ser conseguido até ao verão em termos de grandes reformas, apontando a mira por conseguinte para a garantia da magnitude de meios a acionar no próximo verão. Não tenho qualquer informação privilegiada que me diga que isto é verdade e Marcelo lá sabe as ideias que pretende disseminar. Mas não me espantaria que as tais grandes reformas da floresta, da proteção civil e dos aparelhos de combate estejam atrasados e em desconformidade com o timing com que esses avanços são comunicados.

O problema faz parte de uma questão mais vasta, a que chamo a desconformidade entre os dois tempos da política: o da decisão e da sua comunicação pública, direta, indireta ou simplesmente velada, e o da operacionalização e concretização dos processos de decisão. O gap entre estes dois tempos da política tem vindo a agravar-se de forma tremenda, criando condições para uma perceção malévola da ação política e para a sua degradação pública.

O que é que então se passa?

A generalidade dos governos, na ânsia de constituir grupos na administração da sua confiança e (interpretação benigna ou benevolente) com aumento de probabilidade das decisões terem concretização mais rápida, tem vindo a depreciar equipas e estruturas internas e substitui-las por estruturas informais e amovíveis com a alternância democrática. O que significa um círculo cumulativo vicioso. À medida que o fazem, comprometem ainda a capacidade das decisões serem operacionalizadas em tempo rápido.

Neste caso, esta questão estrutural que está em vias de agravamento torna-se ainda mais complexa, pois estão em causa coordenações complexas entre serviços diversos e máquinas administrativas quase soberanas.

Por isso, a questão dos incêndios e das florestas está a mostrar com evidência clara que a ação política tem hoje dois tempos, o da comunicação e o da operacionalização. Quando a cidadania se aperceber plena e não apenas parcialmente da sua existência, a ação política ainda sairá mais denegrida. E o pior é que a classe política da governação está mais interessada em monitorizar a comunicação das suas decisões do que assegurar o cumprimento da sua operacionalização e execução. O poder dos políticos está cada vez mais frágil, mas foi cama que prepararam ao longo dos tempos.

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