sexta-feira, 30 de março de 2018

ANESTESIAS



(O Quadratura do Círculo de ontem trouxe na sua parte final uma apressada revisita do tema da Catalunha, dela ressaltando a indignação de Pacheco Pereira sobre os presumíveis atentados à democracia em curso no modo como a falta de política deixou espaço à justiça, com riscos de ajustes de contas do “espanholismo” profundo que também presumidamente dominará o Tribunal Supremo. Insisto na ideia de que a perturbação catalã tem sido mal contada em Portugal. Mais do que anestesia há sim uma significativa desinformação sobre a precipitação dos acontecimentos na Catalunha.)

Sou, já o manifestei várias vezes, dos que tenho sinceras dúvidas se na Catalunha haverá presentemente “presos políticos” ou simplesmente “políticos na prisão”.

Comecemos pelos pontos que me parecem indiscutíveis:
  • Existe um nacionalismo catalão, projeção de um catalanismo reproduzido ao longo dos tempos, não necessariamente baseado em factos históricos rigorosos, mas relativamente consistente na sua radicação na população.
  • Esse nacionalismo catalão, pelo menos na sua versão independentista, não domina a sociedade catalã, divide sensivelmente a paredes meias a presença na sociedade, embora possa dizer-se que o catalanismo não independentista é dominante, revendo-se na ideia de nação catalã, transformada constitucionalmente em “nacionalidade”.
  • Do ponto de vista da sociedade espanhola como um todo, representada politicamente nas Cortes, o independentismo catalão não é bem considerado.
  • A deriva independentista do nacionalismo catalão é relativamente recente, sendo objetivamente um produto da decomposição da burguesa CiU de Pujol e companhia; a sua emergência é contemporânea do aparecimento em cena de personagens como Artur Más e, fora a constância programática da Esquerda Republicana, acontece com a manifesta degradação das lideranças políticas, do saco de gatos que é o Junts per Catalunya aos radicais da CUP; Puigdemont é uma espécie de bissetriz excêntrica e menor de toda esta composição.
  • Não é necessário ser um barra em ciência política para concluir que, sendo desejável manter a não-violência histórica do nacionalismo catalão, só uma saída política poderá sustentadamente assegurar o não bloqueio da governação catalã.
  • Essa solução política é fortemente penalizada não só pela inépcia governativa do PP, mas sobretudo pela presença não ignorada das forças mais reacionárias e centralistas do espanholismo nas suas bases e representantes no sistema judicial, o qual na sua vertente constitucional aceitou uma emenda constitucional do estatuto votado da autonomia catalã à medida dos interesses do PP.
  • A não solução política é também fortalecida pela inépcia do PSOE e respetiva fraca representatividade do seu equivalente catalão, a qual juntamente com o vira-vento permanente da política do PODEMOS e a ainda ascendente força do CIUDADANOS prolonga a agonia política em que a Catalunha e a Espanha estão mergulhadas.
  • O desvio de uma solução política para a Catalunha é também largamente potenciado pelo comportamento das forças independentistas, não estando em causa os seus resultados eleitorais; entre outras coisas, é preocupante a sua deriva antidemocrática no tratamento aos catalães que rejeitam a independência e estes, recorde-se, não são uma minoria, antes pelo contrário.
Pergunto: está o povo português consciente destas múltiplas dimensões da crise catalã? Não creio que esteja. Mais do que anestesia, de que fala Pacheco Pereira, há uma sinistra desinformação, com consequências fortemente penalizadoras da devida avaliação dos acontecimentos. O próprio PP já tem oscilado entre desinteressar-se do problema dada a inconsistência da rebeldia catalã e arremeter agora indignado contra o esquecimento em Portugal das práticas antidemocráticas da justiça espanhola. Bem menos elaboradas, as posições de Lobo Xavier e de Jorge Coelho parecem-me mais equilibradas. O primeiro defende que só uma amnistia política pode assegurar o retorno da convivência democrática, não deixando de me interrogar se os independentistas aceitariam de boa-fé uma saída dessa natureza. Tenho cada vez mais dúvidas sobre tais personagens. Jorge Coelho, pelo contrário, mete tudo no mesmo saco e não deixa de ter alguma razão quando menciona uma falha generalizada do sistema político, catalão e de Madrid.

Resumindo, é a fraqueza política de Rajoy e do PP (não da “falcão-fêmea” Santamaría) que explica o seu ocultamento por detrás da colocação nas mãos da justiça. Ao contrário de muitos analistas, penso que a pretensa coragem de Rajoy em acionar o 155º da Constituição é explicada pela possibilidade que tal ação lhe deu de se esconder por detrás das saias da justiça. O juíz Llarena não está a realizar um golpe constitucional, mas a sua deriva é perigosa. Comecei a desconfiar quando o juíz do Supremo começou trabalhar a similaridade da rebeldia de Puigdemont e companhia com o golpe militar de Tejero nas cortes espanholas?

Foi você que pediu um golpe?

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