(Como é conhecido, o PRR está em discussão pública depois do chamado Documento Costa Silva ter sido transformado em instrumento de programação de investimento e reformas e ter sido finalmente publicado o Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho do Mecanismo Europeu de Recuperação e Resiliência. Como vou intervir amanhã no seminário promovido pelo Governo sobre a Componente 6 “Qualificações e Competências” (14.00-16.00), é tempo de trazer para o espaço do blogue algumas reflexões sobre a matéria.
O arranque do período de programação 2021-2027 ficará seguramente na história do planeamento e da programação dos FEEI (Fundos Europeus Estruturais e de Investimento) em Portugal: (i) iniciando-se ainda em plena pandemia e com o séquito de efeitos de devastação sanitária, económica e social que a acompanha, embora hoje com uma significativa melhoria da situação sanitária que nos colocou em pouco tempo do pior ao melhor em termos de terceira onda; (ii) suscitando a necessidade de articulação e coordenação entre o PRR e a aplicação do quadro financeiro multianual mais conhecido pela programação dos Fundos Estruturais.
Teremos assim, pelo menos, na melhor das hipóteses, três anos de implementação inicial de Fundos com uma profunda exigência de recuperação económica. Sabemos da experiência de períodos de programação anteriores que não é nada fácil assegurar execução de Fundos em condições de crise económica ou de início de recuperação da mesma. Mas o desafio maior consiste no facto da recuperação da economia portuguesa não ser similar à de outras economias europeias mais maduras. Nestas últimas, trata-se de repor o ritmo da atividade económica já sem grandes necessidades de mudança estrutural, a não ser o da liderança ou adaptação à evolução da fronteira tecnológica no mundo e na própria União (como acontece tipicamente em economias como a Alemanha, a Suécia, a França ou os Países Baixos. Ora, em Portugal, essa recuperação terá de acontecer em simultâneo com a consolidação da mudança estrutural da economia portuguesa e do seu modelo de especialização, erradicando de vez a nossa trágica e exaurida incursão pelo mundo dos não transacionáveis e do betão. Esta combinação de regeneração económica com mudança estrutural do perfil de especialização está longe, muito longe, de ter concretização fácil. A razão é bem simples: mudança estrutural significa desaparecimento ou adaptação do “velho” e consolidação da emergência do “novo”. Em contexto de pós-crise a facilidade com que se assiste ao desaparecimento do velho não adaptável tem que se lhe diga.
Em teoria, o PRR (recuperação e resiliência) deveria constituir o grande elo de articulação entre as duas dimensões, facilitando a vida à programação dos FEEI que poderia, assim, focar-se mais decisivamente na mudança estrutural, favorecendo a consolidação da emergência do novo. Mas, ao contrário do que o debate público tem vindo a esclarecer, o mecanismo de recuperação e resiliência à luz do qual o PRR nasce, condiciona a alocação dos fundos não reembolsáveis a um conjunto de regras e princípios que não podem ser ignorados.
Em primeiro lugar, os PRR devem enquadrar-se nos chamados pilares europeus:
- Transição ecológica (Green Deal);
- Transição digital;
- Crescimento inteligente, sustentável e inclusivo (coesão económica, emprego, produtividade, competitividade, investigação e desenvolvimento tecnológico e inovação, mercado interno e PME fortes);
- Coesão social e territorial;
- Saúde;
- Resiliência social, económica e institucional.
Em segundo lugar, o Regulamento Europeu do Parlamento Europeu e do Conselho agora aprovado, para além de produzir referentes acerca do modo como os PRR nacionais devem enquadrar-se nos pilares europeus atrás assinalados, fixa limiares mínimos de alocação de recursos de investimento que os referidos PRR deverão assegurar. É o caso da transição ecológico-climática: “montante equivalente a, pelo menos, 37 % da dotação total do plano de recuperação e resiliência com base na metodologia de acompanhamento da ação climática estabelecida num anexo do presente regulamento”. Para além disso, todos os investimentos deverão respeitar o princípio de «não prejudicar significativamente» (ambientalmente, claro está). A transição digital estabelece, por sua vez, o limiar mínimo de 20% para o contributo dos PRR em termos de investimento. É só fazer contas relativamente ao total esperado de 14.000 milhões de euros de subvenções não reembolsáveis, que confronta com a programação esperada de 24.000 para os FEEI.
Em terceiro lugar, uma dimensão que passou fortemente despercebida no debate público que tem sido travado mais como arma de arremesso político do que um verdadeiro debate de ideias, a questão das empresas e do PRR suscitou um grande alarido. Aqui d’el Rey que estas estariam a passar ao lado das ajudas do PRR. Ora, ninguém se lembrou de antecipar o inevitável nestas coisas. Leia-se a parte final do ponto 8 do preâmbulo do Regulamento Europeu: “O referido mecanismo deverá ser abrangente e beneficiar da experiência adquirida pela Comissão e pelos Estados-Membros com a utilização dos outros instrumentos e programas. O investimento privado poderá também ser incentivado através de modelos de investimento público, nomeadamente instrumentos financeiros, subsídios e outros instrumentos, desde que as regras em matéria de auxílios estatais sejam cumpridas”.
A componente de subvenções globais não reembolsáveis monta a 13.944 milhões de €, correspondendo 61,3% às ações de resiliência, 20,7% diretamente á transição climático-ecológica e 18% à transição digital. Os 20,7% de alocação de recursos aparentemente não cumprindo a regra do limiar mínimo dos 37% atrás referidos respeitam apenas às ações diretamente classificáveis como de transição ecológica, devendo a metodologia de acompanhamento da ação climática demonstrar que as ações indiretas preenchem o critério dos 37%.
Não estou em desacordo com a prioridade atribuída pelo Governo às ações de resiliência, seja em matéria de reformas, seja em termos de investimentos. Essa prioridade está, em meu entender em linha, com o papel que atribuo ao PRR na combinação recuperação-mudança estrutural, podendo, se bem implementada, proporcionar melhores condições aos FEEI no seu contributo para esta última, aliviando a pressão para funcionarem também como instrumento de recuperação conjuntural.
É neste contexto de interpretação do PRR que estou a preparar a minha intervenção na discussão pública de amanhã sobre a componente 6 “Qualificações e Competências”. Gostaria que esta componente tivesse sido apresentada segmentada pelas questões da resiliência, da transição climático-ecológica e da transição digital, já que em todas essas frentes se colocam necessidades e desafios de formação de novas qualificações e competências.
Mas isso é matéria do post de amanhã.
Outra matéria ainda, que fica também para outro post, é o da governação do PRR e a sua coordenação com a programação dos FEEI. Aí estou mais cético e julgo ter boas razões para isso. Já agora, quanto ao alarido que por aí grassa sobre a dimensão do dinheirinho e da sua aplicação, estou fato da hipocrisia das agendas mediáticas em Portugal. À mínima dificuldade de aplicação de Fundos a comunicação social vocifera, os deputados sensíveis incomodam-se, telefonam e questionam o Governo e não há Autoridade de Gestão que resista a um baixo nível de execução, pois terá sempre um Ministro também sensível à perna, isto se não for o próprio Primeiro. Convém lembrar que a dimensão estratégica da programação nem sempre se coaduna com uma execução fluida e não preciso de explicar porquê. Mas a indigência do comentário vem sobretudo da falta de informação fruto da preguiça e da inércia do comentador, um síndrome que fica para próximos posts. Ainda na última Circulatura do Quadrado, alguém culto e informado como o José Pacheco Pereira não encontrou melhor exemplo do que invocar as célebres cabeleireiras do FSE de 1986 a 1989, período que marcou negativamente a perceção dos Portugueses nesta matéria. É verdade. O síndrome da indigência e inércia do comentário em Portugal atinge os melhores. Quem sai aos seus …