quinta-feira, 15 de abril de 2021

O REGRESSO DA INFLAÇÃO?

 


(Nos tempos mais recentes têm surgido de vários quadrantes na economia mundial alguns sinais de alerta sobre o “aquecimento” sobretudo da economia americana, que não é mais do que a maneira como o jornalismo económico costuma designar a aceleração do ritmo do crescimento dos preços medido pela evolução de um dado índice ligado às despesas de consumo. Não é por acaso que a questão tem sido mais amplamente debatida nos EUA. Não nos esqueçamos que é na economia americana que vai estar em implementação o mais ambicioso plano de estímulos públicos à economia em tempos de pandemia. Por razões que não serão tema deste post, os riscos de aceleração inflacionista estão entre os argumentos contrários a grandes programas de estímulos públicos como o do Presidente Joe Biden.

A grande recessão de 2008 e as suas inúmeras e diversificadas sequelas como a crise das dívidas soberanas na União Europeia trouxeram ao horizonte macroeconómico das principais economias avançadas um panorama de taxas de juro de curto e longo prazo que ficou conhecido na gíria como “zero lower bound”, com taxas nulas ou mesmo negativas. Acompanhando este cenário, as taxas de inflação mantiveram-se regra geral abaixo da variação de preços que costuma ser associada a uma estabilidade monetária e constituir o referencial da ação exercida pelos Bancos Centrais, uma taxa em torno dos 2%. Relembremos que esta meta dos 2% é uma média e não um teto. Esta questão foi muito debatida entre os macroeconomistas. Houve mesmo quem defendesse que o novo normal recomendaria que os Bancos Centrais assumissem um referencial de inflação acima dos 2% para permitir mexer com o clima de “zero lower bound”.

Desde esse tempo e mais de dez anos passaram (como o tempo passa veloz!), houve vários assomos de fazer ressurgir o fantasma da inflação. Regra geral, esses alertas tiveram origem em centros de opinião interessados em que os Bancos Centrais abandonassem a perspetiva de assistirem impávidos ao crescimento dos seus balanços (aquisição em massa de títulos por parte do Banco Central). O jornalismo económico gosta de designar esses centros de opinião de “falcões” em contraponto às chamadas “pombas” defensoras de uma política monetária mais acomodatícia e menos restritiva. A base desses alertas provinha regra geral de comportamentos bolsistas com prenúncio de comportamento especulativo e, regra geral, tais comportamentos antecipam processos de aceleração inflacionária.

Nenhum desses alertas se revelou efetivo. Até porque as expectativas que os agentes económicos continuaram a alimentar quanto à inflação a longo prazo (valor associado pelos investidores a títulos com maturidades de longo prazo) persistiram em torno de valores baixos que não ultrapassavam o referencial das metas estabilizadoras do Banco Central. Como Bradford DeLong (link aqui) corretamente o assinala para a economia americana, se a inflação observada desde a Grande Recessão tivesse correspondido à meta média do FED USA, o nível de preços nos EUA seria 9,6% mais elevado do que é realmente.

A controvérsia inflacionária parece ter agora regressado com o quadro prospetivo pós-pandemia e quando a economia americana está a braços com o maior importante estímulo público da sua história recente. Como seria de esperar pelos argumentos que aduzi anteriormente.

Nestas coisas, o melhor é ir à fonte e a Casa Branca funciona bem e é acessível. Dois economistas a trabalhar na equipa de Biden, o primeiro bastante conhecido da blogosfera económica que frequento regularmente, Jared Bernstein e Ernie Tedeschi, publicaram em 12 de abril (link aqui) um texto extremamente pedagógico e informativo. O que ressalta essencialmente desse texto é a inexistência de referenciais histórico-comparativos para um quadro pós-pandémico desta magnitude e natureza. Significa isto que o processo vai ser monitorizado com máxima cautela, antecipando a incidência de alguns fatores temporários e não esperando grandes alterações nas condições de longo prazo essencialmente determinadas pelos agentes económicos e investidores em geral. A leitura do texto é um excelente contributo à literacia económica (todos os jornalistas económicos da nossa praça deviam estudá-lo), recomendando-o também aos estudantes de licenciatura.

Bernstein e Tedechi elencam entre os fatores transitórios três tipo:

  • Os chamados efeitos de base, decorrentes da situação de baixos ritmos de inflação que a pandemia trouxe consigo, cuja principal consequência é a dificuldade provocada aos economistas para estimarem a tendência da inflação, ou seja distinguirem entre o que é movimento de preços de correção da descida anteriormente observada e o é movimento mais estrutural do pós-pandemia;
  • As distorções e perturbações registadas nas cadeias de oferta mundiais, tipicamente o que os economistas costumam chamar inflação-custo, em que a transitória escassez de oferta pode repercutir-se em preços mais elevados nos clientes; foi o que intuímos ter acontecido na oferta de portáteis, de componentes para a indústria automóvel que levou à paralisação temporária da AutoEuropa e na oferta de matérias primas (a nossa última estante para Seixas confrontou-se com falta de abastecimento de faia, em parte também induzida pela crise do Canal de Suez. Uma interrogação persiste nesta matéria: qual vai ser o estado da globalização no próximo futuro?
  • E, finalmente, a chamada “procura reprimida”, consumo adiado pela pandemia, poupanças acumuladas durante um ano com vários períodos de confinamento apesar do comércio on line ter disparado; em estreita correlação com a evolução e ritmo do processo de vacinação, esta procura reprimida ou adiada vai aparecer em mercado. É o que os manuais costumam designar de inflação-procura.

Todos estes fatores se antecipam com efeitos transitórios. É óbvio que se estes movimentos transitórios fossem acompanhados de alterações profundas das expectativas a longo prazo outro galo cantaria. Em função do que os investidores em títulos de longo prazo estão a pedir como compensação da inflação, que não se afasta, antes se acomoda às perspetivas dos Bancos Centrais, Bernstein e Tedechi antecipam que a longo prazo nada de novo se espera quanto às expectativas inflacionárias.

Quer isto dizer que o Programa de Biden não encontrará por este lado um contexto desfavorável à sua implementação. Se ele pode funcionar como combustível para essas expectativas isso é questão para outro post. Para já, os “falcões” terão que encolher de novo as suas garras, até porque mesmo antes da pandemia não era totalmente líquido que a economia americana estivesse próxima do seu produto potencial. O FED USA, ainda no tempo de Janet Yellen, tinha iniciado a boa prática de recorrer a um quadro compósito de indicadores para medir a proximidade ao produto potencial, abandonando a perspetiva limitada de o medir apenas a partir da taxa de desemprego.

Como é retribuidor ver economistas que sabem do que falam a mexer na coisa pública. Bons ares se respiram nesta matéria.

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