quarta-feira, 21 de abril de 2021

75 ANOS

 

                                        (Keynes no traço inconfundível de Sciammarella)

(Antonio Carzola Sánchez, catedrático espanhol de história europeia na Trent University do Canadá, assinala em editorial no El País os 75 anos da morte de John Maynard Keynes, assinalando uma efeméride que adquire um outro significado no contexto atual. Em tempos de reabilitação clara e ampla do pretensamente caráter defunto das suas ideias, a interrogação surge de forma inevitável: será que teremos capacidade e inteligência para aplicar as ideias do Mestre sem o próprio?)

O editorial do El País termina com um parágrafo lapidar:

“(…) Diferentemente dos demagogos e apóstolos do mercado, Keynes entendeu que devemos sair das crises considerando em primeiro lugar que futuro queremos. E também não ignorou que a economia é política e por isso mesmo uma manifestação dos nossos valores éticos coletivos”.

O testemunho de Sánchez Carzola é particularmente pertinente nestes tempos de regresso à política fiscal e de tributo à intervenção pública como veículo de mitigação dos efeitos sanitários, económicos e sociais da crise pandémica, aparentemente reabilitando uma política económica que o endeusamento acrítico da política monetária tinha precocemente marginalizado e ignorado. Porque para muitos o keynesianismo recuperado é meramente instrumental para tentar pôr nos eixos o que deles saiu e retomar o “business as usual”.

Mas, como tenho insistido em posts anteriores, a pandemia limitou-se a pintar com cores mais carregadas tendências que já se mostravam anteriormente. Por isso, sair da crise sem repensar o futuro que queremos e que o capitalismo nos pode oferecer e reservar é um desperdício e um erro. Ora, isso não está automaticamente assegurado com a reparação do funeral precoce que alguns tinham dedicado à obra de Keynes.

Por isso recuperar a obra esquecendo os contornos da personalidade e do homem público que Keynes era é de novo ignorar inconsistentemente a história. Liberal de pensamento e orientação política, de uma elite com profunda consciência social, vindo da ética para a economia, heterodoxo quanto baste em matéria de comportamento e de vivência, tão capaz do pensamento mais abstrato, rigoroso e formal como da imersão completa nos pormenores e mecanismos da vida política, financeira e diplomática é uma personalidade irrepetível. Podemos por isso questionar se nos vale de muito invocar os traços mais profundos da sua personalidade e postura na vida pública.

Não vamos ser ingénuos a ponto de pensar que um novo Keynes surgirá da bruma. Mas há traços da sua vida pública que não podem deixar de ser considerados conjuntamente com a releitura da sua obra. É o caso do repensar da arquitetura da ordem económica internacional, a sagaz e persistente construção de novas instituições, a procura dos equilíbrios mundiais, a combinação permanente da economia e da política.

Podemos especular se um novo Keynes estaria confortável com a sociologia dos comportamentos que a pandemia tem destapado. Dizia-me alguém familiarmente próximo que, tendo em conta os bizarros comportamentos que a pandemia tem revelado (negacionistas, propensão para o abismo, multidões incontroláveis, febres súbitas e arrebatadas de consumo e o rol seria longo), só acreditava na ciência e na tecnologia para colocar a crise pandémica a caminho da sua mitigação plena. É uma observação pertinente. Keynes certamente que teria uma explicação. Mas a questão apenas mostra o que Carzola Sánchez exemplarmente nos recorda: sair da crise sem uma visão de futuro poderá representar uma enorme destruição de recursos.

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