segunda-feira, 5 de abril de 2021

UM DEBATE IMPORTANTE

 


(O Twitter das ideias económicas é um mundo fascinante. Os Americanos não brincam em serviço nesta matéria, dá gosto seguir as inúmeras e variadas controvérsias que se travam diariamente nessa rede, o perigo e o risco de tal opção são não fazermos mais nada, se entrarmos numa onda obsessiva. Neste caso, são os nomes conhecidos de Max Roser (Our World Data) e de Noah Smith, muito ativo na blogosfera e um antropólogo menos conhecido Jason Hickel, aparentemente carregado de ideologia.

Tudo começou com o trabalho realizado no âmbito do Our World Data por Max Roser (link aqui e aqui) envolvendo análises sobre o comportamento da pobreza absoluta ao longo do tempo, particularmente a partir da 2ª Guerra Mundial, em que a globalização começou a progredir e também informação respeitante à desigualdade. Na prática, Roser retoma a abordagem de tratamento da pobreza absoluta (em que regra geral se analisa a evolução da massa e da percentagem de população que vive abaixo de um limiar de pobreza definido à paridade dos poderes de compra) e da pobreza relativa (em que as questões da desigualdade mundial são consideradas.

Dos inúmeros gráficos produzidos no âmbito do Our World Data um conjunto teve o seu momento de notoriedade mediática quando Bill Gates o citou e apresentou. Nestas coisas, a verdade é que nos podemos torcer todos nas cadeiras com o incómodo (para quem o sentir, o que não é o meu caso) mas quando uma personalidade como Gates refere alguma coisa o seu impacto cresce vertiginosamente.

Pois, em artigo publicado no The Guardian em 29 de janeiro de 2019 (link aqui), o antropólogo Jason Hickel da Universidade de Londres teve o seu momento mediático de diatribe e glória, atirando-se forte e feio aos dados do Our World Data numa abordagem que poderia ficar por aqui e registado enquanto tal porque publicado num jornal bem respeitável. Percebe-se do “twittar” de Roser (link aqui) que Hickel mantém há bastante tempo uma forte animosidade contra a personagem aparentemente inofensiva de Max Roser, a quem aliás devemos a reunião importante de tanta informação e sobretudo as condições em que a divulga regularmente.

A questão essencialmente em causa é a negação feroz e algo ideológica de que o mundo terá evoluído consideravelmente em termos de pobreza absoluta, quer em termos do peso da população mundial que se encontra nessa situação, quer em termos da massa absoluta de população que se conseguir retirar das malhas da pobreza ao longo do tempo. Qualquer estudante de licenciatura em Economia ou em Ciências Sociais que dê alguma atenção à medida da pobreza e da exclusão social sabe, sem ser um estudante de primeira, que o estabelecimento de limiares de pobreza com poder comparativo a nível mundial é tarefa sempre carregada de dificuldades. Por isso, não imagino que um académico da Universidade de Londres venha para jornais respeitáveis invocar tais limitações para justificar o seu azedume. É claro também que reconhecer que a pobreza absoluta regrediu no mundo não significa de todo que, apesar disso, o mundo é ainda globalmente muito pobre e sobretudo muito desigual. Quando há dias visualizei na NETFLIX o Tigre Branco e dormi mal nessa noite a pensar na violência e na indiferença à mesma a que a dimensão da pobreza pode conduzir percebi isso claramente. A Índia exemplifica fielmente o paradoxo da redução da pobreza absoluta. Aí também a pobreza absoluta regrediu mas a sociedade indiana é ainda tragicamente pobre e sobretudo muito desigual. Depois ainda, a presença dos colossos demográficos (China e Índia sobretudo) complica todas as análises. Ensinamos por isso aos nossos alunos que há uma análise possível com esses colossos demográficos e outra em que devemos expurgar a sua presença.

Ora, mesmo que realizando essa operação de correção sanitária e embora haja diferenças com e sem esses colossos, a redução da pobreza absoluta é inequívoca.

O que é que então o feroz Hickel tem contra uma aparente evidência? O problema que está implícito na sua reiterada diatribe negacionista é o facto de contra todos os preconceitos ideológicos a globalização ter efetivamente contribuído para a redução da pobreza absoluta. A ferocidade vai ao ponto de considerar que os dados de Roser e do Our World data “assumem a violência da colonização e os embrulha como se se tratasse de uma história feliz de progresso”. Ó Deus meu ao que pode chegar a ideologia mais ou menos cega.

É aqui que Noah Smith entra em jogo (link aqui), sobretudo para denunciar o que considera serem dois erros crassos de Hickel (link aqui), abordagem com a qual concordo e que me parecem, sobretudo a segunda, uma das ameaças decorrente do pós-crise pandémica. Explico-me. Os dois erros são que a redução da pobreza global é apenas um mito e que o decrescimento é a melhor solução para resolver os nossos problemas ambientais, designadamente a emergência climática.

Como Noah brilhantemente o denuncia, o preconceito de Hickel radica no facto de associar o reconhecimento da redução da pobreza global ao triunfo do capitalismo e das forças do mercado livre. Ora, encarniçado crítico destas duas realidades, Hickel nega a realidade para não se comprometer com os putativos êxitos do que rejeita e abomina. Pois o académico londrino está completamente errado. A redução da pobreza absoluta observada nos dados mundiais tem um território privilegiado de verificação, a Ásia Orienta. Ora se há continente e experiências nele emergentes que se afastou mais do Consenso de Washington e do primado das forças livres de mercado é a Ásia Oriental. Economistas mais cuidadosos como, por exemplo, Dani Rodrik mostraram como a rejeição desse princípio foi favorável a essas nações mais heterodoxas em termos de política comercial externa, de política industrial e de política de desenvolvimento em geral como a ilustração do Vietname nos convoca.

Hickel bem pode insistir na necessidade de um novo limiar para medida do nível da pobreza, por exemplo fazendo-o subir de 1,90 dólares para 7.40 dólares dia. Ora a questão é que não podemos pensar a evolução da pobreza em função apenas de um único limiar, ignorando o crescimento real dos padrões de vida dos mais pobres por mais insuficientes que consideremos os valores observados.

Um dos maiores riscos do pós-pandemia é a ocorrência de um “backlash da globalização”. A globalização tem que ser critica e inteligentemente reformada. Nunca pensei estar de acordo com o Economist: “Don’t give upon globalisation”. Sim, não desisto da globalização mas não abdico de defender a sua reforma crítica. A ideologia de Hickel poderia conduzir-nos a dois erros trágicos: interromper a globalização e com isso perturbar o processo de redução da pobreza absoluta e pregar o decrescimento global que equivaleria por outra via a condenar os mais pobres a mais pobreza.

Valha-nos o enorme apoio que Max Roser recebeu dos inúmeros professores e ativistas que por esse mundo utilizam e divulgam os dados do Our World Data sem que isso signifique perder o sentido crítico da sua interpretação.

De académicos que se transformaram em fósseis ideológicos não rezará a história. A descarbonização das ideias também passa por reduzir estes outros “fósseis” à sua irrelevante dimensão.

 

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