segunda-feira, 26 de abril de 2021

REFLETINDO E APRENDENDO COM O QUE SE PASSA EM ESPANHA

 

(Já por repetidas vezes reiterei o meu interesse pela reflexão que um politólogo tradicional e com passagem controversa pela vida política galega até aterrar como Catedrático de ciência política na Universidade de Santiago de Compostela tem produzido nas suas crónicas na VOZ de GALICIA, Xosé Luís Barreiro Rivas. O tema que hoje trago a este espaço prende-se com a mudança operada em Espanha de um modelo com bipartidarismo de alternância democrática, PSOE versus PP, a um outro caracterizado pela fragmentação e pulverização parlamentar e pelo choque entre blocos políticos alargados, como as eleições em Madrid estão claramente a projetar.)

Tal como todos o compreendemos, a situação política espanhola não é facilmente extrapolável e a análise comparativa com outros contextos políticos, como o nosso, tem de ser concretizada com pinças, o que é a mesma coisa que dizer que os contextos e os intervenientes devem ser rigorosamente confrontados. Mas é impossível ficar indiferente à transição política que está a acontecer diante dos nossos olhos, de que as eleições em Madrid do próximo 4 de maio e especialmente esta última semana de campanha eleitoral são os referentes mais representativos. E o que é curioso é que esse confronto tem esmagado mediaticamente o conflito catalão, onde o independentismo se tem arrastado num incompreensível adiamento de formação de governo para a Generalitat.

Durante largo tempo, a vida política democrática espanhola foi dominada por um intenso e declarado bipartidarismo entre o PSOE e o PP. Este confronto de alternância democrática conseguiu algo de relevante que importa não ignorar. Conteve e geriu as tensões com as autonomias regionais, veiculou alguma modernidade à economia e à sociedade espanholas e, graças ao PP, acomodou democraticamente a direita mais ultra e ressabiada. Em correlação com estas realizações, a economia espanhola teve o seu melhor momento de afirmação competitiva internacional.

Nos tempos mais recentes, com maior clareza no rescaldo da Grande Recessão de 2008 e problema das dívidas soberanas associadas, que em Espanha assumiu sobretudo efeitos extensivos no sistema bancário e financeiro, evidenciado a vulnerabilidade da acumulação de capital até aí observada, o modelo de bipartidarismo com alternância democrática entrou em crise aberta. Vários motivos o determinaram. Por um lado, a inconsistente leveza de Zapatero abriu rombo na capacidade do PSOE compreender em profundidade a evolução da sociedade espanhola, deixando-se mergulhar nas características que a crise de 2008 e suas sequelas haveriam de mostrar que eram profundamente vulneráveis. A emergência do PODEMOS e de Pablo Iglésias é uma consequência do grande movimento dos Indignados que abalou a sociedade espanhola, uma espécie de meteorito político que fez com que o PSOE nunca mais recuperasse o fôlego eleitoral de outros tempos.

Por sua vez, à direita, o processo de recomposição foi iniciado com a ascensão também meteórica e posteriormente revelada como fugaz do CIUDADANOS, com a novidade e juventude de Rivera e sobretudo com o resultado nas eleições catalãs protagonizado por Inés Arrimadas. Depois, a direita mais ultra e ressabiada acomodada pelo PP deu o seu grito de Ipiranga e deu fogo ao VOX que passou a marcar todo o espaço político à direita, aderindo ao original e fugindo da cópia que o PP começou a protagonizar depois da debandada de Rajoy.

Como não podia deixar de ser, com o combustível de uma gestão de pandemia que teve tudo menos consistência e coerência de comando, esta decomposição do bipartidarismo atiçou os nacionalismos regionalistas e a pulverização instável instalou-se.

Dirão alguns que esta transição reconduzirá o confronto político a uma substituição do contraponto bipartidário pelo confronto entre blocos, esquerda versus direita. Esta última semana de campanha eleitoral em Madrid parece dar razão a esta tese. Mas o que me parece também ser hoje já perfeitamente visível é que mesmo organizado em grandes blocos o modelo continua a ser minado por uma fragmentação e instabilidade profunda. Primeiro, à esquerda chamar ao conjunto PSOE, PODEMOS e Esquerda Unida um bloco é puro delírio. O PSOE tem governado com oposição clara dentro do executivo protagonizada pelo PODEMOS (pelo menos até à saída de Iglésias de malas aviadas para as eleições de Madrid), o PODEMOS está cada vez mais instável e a Esquerda Unida é hoje uma ficção). Segundo, à direita a pólvora está no ar. O CIUDADANOS agoniza e dá pena ver um partido que se vestia de modernidade e de perspetivas anti-corrupção entrar em erosão acelerada. O PP oscila entre estilos, se mais institucional como o de Casado ou o mais impetuoso e desbragado como o de Ayuso. E o VOX vai capitalizando tudo isto, colocando as garras de fora, perdendo o pudor.

Nas palavras de Barreiro Rivas (link aqui):

O resultado da degradação sistémica é que, o que antes era bipartidarismo imperfeito, é hoje uma confrontação radical entre blocos; que a dispersão partidária é tão grande que apenas existe a possibilidade de criar maiorias incoerentes e instáveis; e que os âmbitos em que o diálogo se baseava - parlamentos, debates, acordos transversais e bases constitucionais de consenso amplo e seguro - de amplio e indubitado consenso- configuram hoje um campo e Agramante (divisão e discórdia, nota minha) em que todos os temas, atores, debates e circunstâncias se convertem em ocasiões para a confrontação e a troca ácida de insultos e desqualificações. E daqui resulta que todos os debates tenham sido substituídos por contendas banais que nada têm que ver com as angústias de momento”.

É a última semana da campanha eleitoral de Madrid, que mais parece uma batalha campal, em que o confronto entre Pablo Iglésias (PODEMOS) e Rocío Monasterio (VOX) se sobrepõe a tudo o resto, que inspira essencialmente o comentário anterior. O rastilho foi simples. Iglésias recebeu ameaças com cartas que continham balas no seu interior. Monasterio e o VOX duvidaram dessa ameaça e a batalha campal instalou-se.

Não sei se os eleitores espanhóis já se arrependeram de terem precocemente colocado fogo no tal bipartidarismo imperfeito. O produto do incêndio não é animador.

Mas com os problemas do eleitorado espanhol posso eu bem. O que me interessa é retirar lições para o caso português. Na nossa esquerda não parece haver por agora tentações de seguir a instabilidade espanhola, alguns tiros nos pés parecem contudo não ter furado os sapatos. À direita, a situação é mais preocupante. Candidato a Monasterio (VOX) existe e está a crescer, capitalizando ressabiamentos que nunca desapareceram da sociedade portuguesa. O CDS-PP não é seguramente o CIUDADANOS mesmo em agonia e é pena, uma Arrimadas à portuguesa menos betinha que a Cristas faria bem à direita portuguesa. E o PSD espero que endireite e deixe de se transformar em vara flexível, tal qual bambu dos mais frágeis ao vento, esperando eu que as autárquicas não resultem em vendaval.

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