(Os tempos pandémicos foram e continuam a ser terríveis e trágicos para uma fração muito importante da população mundial e isso bastaria para a terem conta pensando o futuro. Mas, por comparação com os efeitos económicos e sociais também trágicos da crise de 2008 e seu prolongamento pelo afundamento das dívidas soberanas, pelo menos uma grande e incontornável consequência deve ser bem recebida – a consagração definitiva dos estímulos à atividade económica para combater o potencial emergente de uma depressão.
Se nos recordarmos da luta titânica e incessante que alguns macroeconomistas tiveram de travar no “aftermath” da Grande Recessão de 2008 para chamar a atenção para a recuperação agónica das principais economias avançadas e para a necessidade de recordar a vitalidade da política fiscal será fácil compreender como a situação mudou substancialmente com gestão macroeconómica da pandemia no mundo ocidental avançado. Dessa luta titânica resultou sobretudo uma ideia que aparentemente é simples, mas cujo conteúdo de implicações futuras é crucial para a política monetária e macroeconómica em geral. É sempre preferível prolongar no tempo estímulos à economia e gerir os riscos potencialmente inflacionários dessa medida do que cortar precocemente esses estímulos e correr o risco de uma nova recessão. A comparação é simples de compreender. É sempre mais fácil conter pressões inflacionistas do que superar forças recessivas. Devemos essa conquista e perceção sobretudo aos macroeconomistas americanos e à ação diligente do FED USA com Janet Yellen ao seu leme.
Se estiveram atentos, o sobressalto com que os riscos inflacionários foram desta vez colocados não tem comparação com o discurso na época do após Grande Recessão. É verdade que eles surgiram de novo quando as taxas de juro deram ténues sinais de poderem subir, mas foram inconsequentes. O tempo é dos estímulos e da política fiscal e isso talvez constitua a única recordação positiva da pandemia no plano económico, num ambiente que seria totalmente mais devastador se os tempos fossem outros.
A eleição de Biden nos EUA trouxe à questão uma proporção que não imaginaríamos quando o mundo se interrogava se Trump poderia ser derrotado. E se enveredarmos pelo confronto “o meu estímulo é maior do que o teu” a economia americana vence a União Europeia em toda a linha. Embora a dimensão de um programa de estímulos económicos não se meça pelo que é anunciado, mas antes pelo que é legislado, programado e executado (e essa questão nos EUA tem um mais amplo significado dada a curtíssima margem que os democratas têm nas duas Câmaras (de três votos no Congresso), há já quem compare a importância do programa com os tempos de Roosevelt e isso é o melhor elogio que pode ser feito à administração de Biden. Susan G. Glasser lembrava na New Yorker (link aqui) que Franklin Roosevelt tinha uma maioria de 3 para 1 no Congresso sobre os Republicanos e de 59 votos no Senado, o que compara bem com a estreita margem de manobra de Biden, apontando para uma polarização política sem comparação na história americana.
Um montante aproximadamente de quatro milhões de milhões de dólares é o que se chama em linguagem coloquial um balúrdio de dinheiro. O programa de Biden está alicerçado em duas grandes dimensões, tendo por isso uma estrutura bastante legível. Tem uma dimensão de uma fortíssima modernização infraestrutural, já que a economia americana vinha padecendo de um défice de qualidade de infraestruturas impróprio de uma economia avançada e líder mundial. Mas tem também uma dimensão de capital humano e social, o que no programa de Biden é curiosamente designado de infraestrutura humana. Benjamin-Wallace-Wells na New Yorker (link aqui) fala-nos da mais que segura influência da economista Claudia Goldin de Harvard, especializada nos temas do mercado de trabalho, qualificações e igualdade de género, representada através da sua discípula Cecilia Rose que dirige o Council of Economic Advisors do Presidente Biden.
É um tempo estimulante o de passar do domínio da análise crítica do declínio americano em termos de qualificações e igualdade de oportunidades à ação. A academia que se notabilizou na primeira tarefa, e o debate na academia americana é intenso e sem medo de ocupar os jornais, vai ter agora responsabilidade direta senão a partir dos seus mentores pelo menos a partir dos discípulos que vão meter a mão na massa. A ação nunca corresponde às expectativas da teoria, mas respira-se um outro ar. O programa de Biden não é apenas um programa de estímulos de resposta à devastação económica provocada pela pandemia e pela errática gestão da administração Trump. É também um programa que visa responder a insuficiências estruturais da economia americana provocadas pela negligência e pela cegueira ideológica.
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