(A escolha do tema para esta sexta feira foi mais complexa e estranha do que o habitual, sem aquela inspiração de momento que regra geral acontece com os temas e leituras a cruzarem-se espontaneamente no meu caminho. Há um montão de temas a encavalitarem-se uns nos outros, produzindo uma miscelânea pascal que é bem mais amarga do que uma mistura de iguarias deste tempo.
Começo pela saga dos apoios sociais e da querela político-constitucional que se adivinhava. A questão é de difícil tratamento pois transporta consigo várias dimensões que estão muito para além da vertente constitucional, sobre a qual estou curioso qual vai ser a interpretação do Tribunal Constitucional. A questão para mim mais relevante é o contexto desfavorável em que a posição de António Costa e do Governo é formulada. Quero referir-me à fragilidade evidente que ressalta do confronto entre o discurso dos apoios sociais e das decisões políticas que são tomadas a esse respeito e o real efeito de tais medidas chegando a beneficiários concretos. O que se depreende do que se vai ouvindo e lendo na comunicação social, pois continua a não ser transparente e clara a informação sobre políticas sociais em Portugal, é que as medidas são concebidas e preparadas em função de um quadro potencial de beneficiários que não coincide com o quadro efetivo de indivíduos que se perfila depois ao recebimento dos benefícios atribuídos. Este gap pode ter várias razões: (i) pode resultar de uma má preparação das medidas, resultante de informação equivocada ou insuficiente dos serviços da segurança social, aparentemente os que são mais mobilizados para o efeito; (ii) mas também pode resultar do choque possível entre a informalidade de alguma situações e as condições de atribuição e seleção dos apoios que apelam a “prova de recursos” que pode afugentar possíveis beneficiários; (iii) pode resultar ainda de complexidade administrativa excessiva e desnecessária para apoios que tenderão a ser temporários. O que temos visto é uma ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social algo atarantada em justificações, sugerindo que a sua estrutura técnica de apoio tem o quadro mal dominado e com pouca capacidade de informação regular à ministra.
O apego constitucional do Governo nesta matéria cai bastante por terra com este gap entre apoios prometidos e benefícios efetivamente pagos, já para não falar da tendência reiterada em a Conta do Estado ficar aquém do Orçamento em muitas rubricas. Hostilidades entre Presidente e Governo nesta altura de relativa acalmia pandémica é má opção quando esta última pode recrudescer antes do impulso definitivo da vacinação com o avançar do desconfinamento mesmo que faseado e relativamente sensato.
A outro nível, é uma dor de alma assistir ao imbróglio em que o PSD está alegremente a mergulhar, principalmente depois que se deixou enredar na armadilha dos Açores. As bases concelhias estão ao rubro e pela leitura de algumas das escolhas, sobre as quais a Direção nacional ainda não se pronunciou, a ameaça das paredes meias com o Chega não é apenas folclore. É difícil antever o que vai pela cabeça de Rio e dos que lhe são mais chegados e mesmo o balão de ensaio com a candidatura de Carlos Moedas a Lisboa perdeu subitamente gás. Entregar a direção de campanha de Carlos Moedas a um médico de saúde pública e epidemiologista, Ricardo Mexia, não lembraria ao diabo, essencialmente por dois motivos: primeiro, porque podemos ler retroativamente algumas intervenções e comentários do personagem em plena pandemia e chegar à conclusão de que essa ideia de entregar aos cientistas e aos médicos as decisões tem que se lhe diga; segundo, porque pode perguntar-se se Moeda pretende ajustar o seu projeto de mandato a um modelo de gestão pandémica, o que nos leva a conclusões tão ou mais sinuosa do que as primeiras.
Se a tese de que Marcelo pensa o seu segundo mandato como uma oportunidade de ajudar a constituir uma alternativa democrática ao centro-direita tem algum fundamento, então o Presidente terá que dar imensa corda aos sapatos para conseguir alguma coisa que se veja. Francamente, não sei se é desnorte, se é incompetência ou simplesmente se Rio atingiu aquele estádio de quanto mais depressa sair disto melhor.
Noutro plano ainda, o Expresso de hoje apresenta um cenário de catarse possível com a futura divulgação do relatório de instrução do processo Sócrates e companhia, sobretudo em torno da hipótese de que o ex-primeiro ministro possa não ser acusado pelo crime de corrução, dadas eventuais inconsistências de investigação e de prova. A peça do Expresso é corajosa mas apenas os cenários possíveis que ela suscita são suficientes para gerar toda uma imaginação cabalística, atingindo a própria classe dos juízes. Como seria de compreender, não há classes que estejam acima das derivas que por aí pululam, como o temos reconhecido nos últimos tempos, por exemplo com médicos e juízes negacionistas a disputarem o seu quinhão de atenção mediática. O modo como a sociedade portuguesa receber o resultado do processo de instrução e aquilo que irá efetivamente a tribunal na Operação Marquês vai transformar-se num teste decisivo ao chavão do Estado de Direito.
E para fechar a miscelânea a procissão do Novo Banco continua a dar voltas ao adro. O inquérito parlamentar apagou-se de importância mediática, mas a relação Novo Banco – Fundo de Resolução está para durar e embora o CEO António Ramalho tenha acenado com lucros operacionais para breve, sabe-se lá com que fundamento, a verdade é que a defesa sistémica do sistema bancário parece não ter fim. Sente-se o tic-tac da bomba das moratórias e o que começa torto dificilmente se endireita.
Como nota final, e apesar da época festiva pascal, não ficaria de bem comigo próprio sem uma palavra para duas tragédias que falam português: o genocídio pandémico do povo brasileiro às mãos de uma cavalgadura feita político validado pelas urnas, Bolsonaro e o drama dos moçambicanos do Norte que vivem em cima de riquezas do subsolo, atingidos pela trágica combinação do fanatismo religioso, a ganância da economia predadora e extrativa e a incompetência corrupta de um governo que nem sequer é capaz de reconhecer a necessidade de um pedido de ajuda.
Amêndoas, se possível de chocolate negro, pão de ló e uma boa fatia de Queijo da Serra é o que eu preciso para abafar esta miscelânea.
Boa Páscoa.
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