sexta-feira, 16 de abril de 2021

A CULPA DE SÓCRATES NÃO BRANQUEIA A CULPA DO SISTEMA

(João Fazenda, https://visao.sapo.pt)

Assisti anteontem, como tantos portugueses, à entrevista concedida por José Sócrates à TVI e a José Alberto Carvalho. Assim como às suas subsequentes repercussões em termos de comentário jornalístico-político. Tudo, a meu ver, pleno de aspetos chocantes. Sublinharia, em especial, a postura ameaçadora, acintosa e ferozmente acossada do ex-primeiro-ministro, por um lado, e a incrível parcialidade e superficialidade de muitos alegados especialistas e homens de Estado, por outro. Não me querendo esticar muito na matéria, procurarei ainda assim elaborar um breve ponto de ordem identificativo de alguns dos tópicos que julgo merecedores de mais e nova atenção.

 

Primeiro: que este foi um processo politicamente condicionado desde o seu início ficou bem patente na vergonhosa forma como Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa, à saída do avião que o trazia de Paris, com câmaras televisivas e perseguições automobilísticas em direto – um marco imperdoável constitutivo de um pecado original que, à falta de melhor definição, terá uma responsabilidade assacável ao juiz Carlos Alexandre ou à sua zona de influência. Depois, vieram as agravantes de sucessivas fugas de informação e do seu cúmulo em escutas escandalosamente difundidas sobre o interrogatório de Sócrates – culpa de quem que não do(s) mesmo(s)? Antes, ainda tivéramos o detido em prisão preventiva sem culpa formada (e por razões de perigo de fuga, no mínimo discutíveis na circunstância) durante onze longos meses em que a acusação não vinha e a praça pública era permanentemente alimentada nos seus despeitos ou ódios. Por fim, e entre outros pontos, releva toda a questão da escolha do juiz, aparentemente um processo de legalidade muito duvidosa (para dizer o mínimo). Estes são lados em que a posição de Sócrates se tornou legitimamente suscetível de um capital de queixa – e isto tem de ser dito! – e em que, se os diversos intervenientes tivessem agido conformemente à lei e à moral pública, o tema poderia ter sido objeto de um tratamento, mais consonante com os factos propriamente ditos e não com os incidentes e as mentiras em presença (alegadamente ou não) que os afetaram.

 

Segundo: que Pacheco Pereira ou Lobo Xavier, para só referir estes de entre outros, confundam a sua avaliação subjetiva global do caso e do personagem político com a dispensa de uma análise objetiva do dossiê em questão não é de todo aceitável, porque tal não é suficientemente sério (ao evitar os pontos a que acima aludo com uma mera ultrapassagem dos mesmos assobiando para o lado). Como também não o são as certezas proclamadas por Miguel Sousa Tavares e Clara Ferreira Alves ou as convicções não fundamentadas de Marinho e Pinto e Filipe Santos Costa, mais uma vez entre outros. Sobram pela positiva intervenções, raras na sua pedagogia e construtivismo, como as de Manuel Magalhães e Silva e José Miguel Júdice (quando fala do que sabe...) – o que é manifestamente pouco, muitíssimo pouco mesmo.

 

Dito isto, e só depois disto dito, é que devemos descer ao concreto dos factos e das leituras melhor ou pior comprováveis deles, assim como à interpretação possível das várias gavetas do lamentável “megaprocesso” (incluindo a estratégia do Ministério Público e as opções tomadas pelo juiz Ivo Rosa no seu despacho instrutório) e das suas intrincadas complexidades de ordem jurídica (prescrições, nomeadamente). Temas onde não falta que dizer e especular e onde a “asneira” impressionista até pode ser considerada tolerável. Pela minha parte, a componente especulativa leva-me ao encontro de vícios e trapalhadas na “verdade” e na argumentação autocentrada e megalómana de Sócrates (facilmente rebatível pelas escutas e outros elementos constantes do processo, incluindo declarações próprias), enquanto no restante o meu entendimento é o de que devo fazer prevalecer o silêncio (dada a incompetência essencial de um economista que apenas conta no currículo com uma aprovação datada em algumas cadeiras de Direito). No entanto, o que já não posso aceitar, na estrita qualidade de cidadão e apenas com base nela, é que vivamos num país em que as regras formais do jogo democrático não são respeitadas (ou são provocadora e impunemente adulteradas), como claramente aconteceu no caso de José Sócrates. Repito, porque é crucial que o sublinhe: independentemente dos seus atos, das suas culpas, das suas contradições, das suas mentiras, das suas duplicidade, das suas exibições e das suas políticas, o arguido não devia ter sido julgado em praça pública com a conivência das autoridades judiciárias.

 

Ah, e quanto ao PS – no meio dessa súbita enxurrada de traições, covardias, repugnâncias e canalhices, além de referências justas ou injustas a mandantes e de não mais do que hipotéticas autocríticas ou reflexões reavaliadoras –, acho que prefiro tão-somente não me pronunciar...

Sem comentários:

Enviar um comentário