terça-feira, 6 de julho de 2021

BALADA DA MÉDIA VIRTUDE

 


(É um grande título e uma obra de análise da economia portuguesa que em meu entender abre campos de investigação novos e promissores, rejuvenescendo leituras já gastas e Lisboa-cêntricas e que têm sido incapazes de desenvolver laços inteligentes entre a dimensão económica e a territorial, por via da atenção dedicada às empresas. Mais do que um ensaio de recensão crítica que aqui se apresenta, é sobretudo a preocupação de identificar quais são os caminhos mais promissores para transformar a Balada num marco de investigação aprofundada. E obviamente parabéns aos autores, esperando que outras leituras da mesma contribuam para lhe conceder a notoriedade que merece.)

A invocação de Agustina Bessa Luís é uma referência de se lhe tirar o chapéu. Sempre achei que se há na literatura portuguesa matéria para uma visão distante, profunda e descomplexada do económico é na obra de Agustina que a poderemos encontrar. Sobretudo não conheço ninguém melhor do que Agustina para nos conduzir à profunda subtileza da distinção entre o económico e o financeiro e para mim a explicação é muito simples. Augustina não era versada em economia ou finanças, mas tinha um conhecimento profundo dos ambientes e dos grandes personagens, o que combinado com a espantosa capacidade de caraterização de personalidades e comportamentos explica essas belas páginas sobre as subtis diferenças entre o económico e o financeiro, a partir do seu conhecimento da burguesia comercial e da nova burguesia financeira. Outra questão bem diferente é saber se, para além dos autores que se assumem nessa linha de filiação genética e cultural, o sentido da média virtude ainda persiste enraizado no território que está essencialmente em jogo na aprofundada análise económica evolutiva que a obra nos oferece. Sinceramente tenho as minhas dúvidas se o próprio desaparecimento da Agustina não é ele próprio simbólico de que também a média virtude fenecerá com a evolução, não sabendo se trazendo melhores ou piores virtudes.

Mas concentremo-nos nos contributos analíticos da Balada.

A análise pormenorizada do processo de transformação estrutural que nos conduziu à anomia e também à anemia de crescimento após o início da década de 2000 é um marco imprescindível para se compreender os capítulos mais virados para o futuro e focados na apresentação de novas hipóteses para a economia portuguesa. A análise da Balada vem juntar-se, talvez de modo mais compreensivo e assumido, a contributos nessa direção que tinham sido produzidos seja em algumas intervenções de Carlos Costa então ainda Governador do Banco de Portugal e de alguns textos da obra coletiva “A Economia Portuguesa na União Europeia: 1986-2010” (Atual Editora), particularmente nas análises de Fernando Alexandre. Essa leitura do processo de transformação estrutural que nos conduziu ao esgotamento do modelo de crescimento económico não recebe as loas dos economistas afetos ao Bloco (Ricardo Paes Mamede à frente do grupo) e também ao PS, que regra geral tendem a contrapor os efeitos da financeirização da economia global como os grandes responsáveis da deriva económica e financeira portuguesa. Estou francamente de acordo com os autores da Balada nesta matéria e, aliás, essa explicação é sem sombras de dúvidas mais convincente do que a tentativa mecanicista e forçada das explicações à la Boaventura Sousa Santos e à la CES de Coimbra centradas naquilo que eu penso ser um não conceito, o de semi-periferia para caracterizar estruturalmente a economia portuguesa.

Nos dois primeiros capítulos da obra, que os entendo como uma espécie de ponto de ordem à mesa (bons tempos!), são profundamente analisados os processos de mudança da afetação de recursos na economia portuguesa, que foram sinalizando perspetivas de rendibilidade em setores e atividades que entroncavam sobretudo com os não transacionáveis, com o afluxo de capitais, a bondade das taxas de juro e a bonomia do crédito a perfilarem-se como os novos símbolos do progresso prometido (a fase boa e atrativa da integração europeia).

Nesta matéria, talvez haja para estudar ainda de que modo o modelo centralista da economia portuguesa sobredimensionou essa deriva da afetação de recursos, até porque se trata de um aspeto que os autores, aí com ousadia inovadora, exploram mais à frente quando discutem originalmente a complexidade da economia portuguesa e ensaiam a sua territorialização.

Gosto especialmente do livro a partir do capítulo 3, em que se parte do desempenho das empresas. A análise económica em Portugal nunca integrou cabalmente esta pista de investigação, seja porque a insuficiência da informação estatística empresarial não autoriza grandes voos, seja ainda porque a sabedoria dos estudos de caso empresariais não tem lá grandes raízes na academia, seja ainda porque o ensino da gestão em Portugal desprivilegia grandemente as questões da análise económica, como aliás é visível nos programas dos MBA. O ensino da gestão ou é condescendente ou borrifa-se para a economia, não percebendo que há economias e não uma economia. O mainstream macro e microeconómico, sobretudo o primeiro, foge das empresas como o diabo da cruz e assim lá vamos cantando e rindo sem quais propósitos de aproximação disciplinar.

A Balada traz-nos, assim, uma primeira proposta das dualidades do setor empresarial em Portugal e introduz variáveis como a qualidade da gestão como novos campos de aprofundamento da investigação. Esta orientação será decisiva para compreendermos melhor a evolução do desempenho da inovação nas empresas portuguesas, que considero a grande linha de evolução para se avançar em abordagens centradas no desempenho empresarial.

Até agora, nós economistas estamos presos na influência de dois tipos de indicadores: (i) os que resultam de análise da economia portuguesa através de agregados setoriais definidos a priori (por exemplo setores de média e alta tecnologia ou de serviços intensivos em conhecimento), que em meu entender enviesam negativamente a posição desfavorável da economia portuguesa; (ii) os que resultam de respostas das empresas aos inquéritos comunitários à inovação (que declaradamente sobrevalorizam o comportamento de inovação das empresas portuguesas). Em meu entender, a única forma de romper com este estado da arte é multiplicar estudos concretos sobre empresas concretas (designadamente conjuntos relacionados de PME).

Retirando o facto de esperar algo mais do estudo da produtividade da economia portuguesa, designadamente integrando análises mais aprofundadas sobre o comportamento da produtividade aparente do trabalho, da produtividade do capital e da produtividade total dos fatores (onde os custos de contexto do centralismo continuam por estudar), é nos capítulos 5 a 7 da obra que o contributo da Balada é mais original e abre pistas mais promissoras e convincentes de investigação e de formulação de política pública.

É curioso que a ideia central que acaba por atravessar os três capítulos e as perspetivas mais inovadoras de análise é da complexidade da economia, entendido como conceito chave da maturação estrutural das economias e do seu perfil de especialização. Confesso que, independentemente da sua sofisticação analítica, os trabalhos de Cesar Hidalgo e Ricardo Haussman (o economista venezuelano de Harvard tão odiado pelo execrável Maduro) não me impressionaram por aí além do ponto de vista do seu poder explicativo da transformação estrutural. Parece-me evidente que essa sofisticação analítica recorre sempre ao background de contributos, esses sim mais robustos e profundamente explicativos ainda hoje, como Alfred O. Hirschman (claro como não podia deixar de ser!) e por isso esses contributos se aproximam mais de uma visualização do estado da arte da transformação do que propriamente uma explicação robusta dos passos em questão.

Mas importa registar que a mobilização que os autores realizam dos estudos e das métricas da complexidade estrutural excedeu claramente as minhas expectativas quanto à valia do material utilizado. Achei sobretudo muito interessante que, na perspetiva da análise do potencial que se nos abre, apesar da carga da inércia estrutural e agora da necessidade de recuperação inclusiva após a pandemia, os autores encontram diferenças em termos de campos de oportunidade entre o tecido industrial do Noroeste e o da aglomeração metropolitana de Lisboa. E, melhor do que tudo, recuperar a ideia de política industrial, mesmo que travestida de política de inovação para União Europeia ver e validar, é uma boa malha

Finalmente, quanto à territorialização de tudo isto, os autores centram-se no chamado Noroeste industrializado, digamos de Viana a Aveiro, com dificuldades óbvias de medir a sua extensão para este e interior e a de saber se não há territórios na região Centro que partilham as mesmas características da “média virtude” (essa é a minha intuição). Há aqui problemas de governança e de governação para os quais é necessário sensibilizar as forças políticas democráticas e algumas associações empresariais, sobretudo se estas deixarem de estar presas entre o saudosismo e os desejos de poder não escrutinado democraticamente. É por isso saudável que, na parte final do capítulo sétimo, a questão da geometria variável territorial venha a terreiro e que a ideia das Ligas de Cidades possa ter um desenvolvimento mais profissionalizado e ambicioso (o Porto tem de se movimentar neste campo e dar mostra de liderança nesta matéria). Obviamente, os autores não esquecem o problema da regionalização, mencionam-no no quadro de uma ideia inconsequente com mais de 30 anos. Tenho para mim que esta incapacidade de decidir se sim ou sopas tem alimentado a imaginação criativa das soluções sub-sub-ótimas para essa incapacidade, com sérias consequências de esgotamento de energias e de deceções mais ou menos coletivas, em que eu próprio em parte me insiro. Talvez não fosse despropositado ouvir as empresas sobre isso.

Parabéns ao Fernando, ao Guilherme (a eles posso tratá-los assim) e ao Rui Moreira por esta tomada de posição. E se o José Manuel Júdice descobriu a importância do vosso contributo daí também não vem mal ao mundo.

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