segunda-feira, 5 de julho de 2021

100 ANOS DE COMUNISMO NA CHINA (2)

 

(O tema do post do meu colega de ofício neste blogue despertou-me algumas recordações, que coincidiram com o acesso em língua inglesa a um documento de relevante importância trazido ao conhecimento de todos por Brad DeLong, numa curiosa comparação do culto da personalidade de Mao e dos Republicanos face a Trump. É um texto corajoso, que acabou em purga cruel até à sua morte, dos tempos da campanha do Grande Passo à Frente na segunda metade dos anos 50 e é apresentado cerca de 15 dias antes do 8º Encontro Plenário do Partido Comunista Chinês em Lu Mountain Jiangxi por Peng Dehuai.)

Praticamente toda a minha geração, pelo menos da que me era mais próxima, teve os seus flirts com o radicalismo. Devo dizer que o maoismo nunca me encantou e a revolução chinesa passou pelos meus sensores de leitura apenas como mais um exemplo de transição revolucionária que não conseguiu resolver o problema dos camponeses, sobretudo nas fases mais agudas da acumulação socialista de meios de produção. Lembro-me que a referência na altura eram as obras de Charles Bettelheim, mas a sua análise da Revolução Cultural deixou-me na altura desapontado e a partir daí o maoismo deixou de figurar nos meus exemplos de transição que valesse a pena estudar com alguma profundidade.

O texto que Bradford DeLong identificou (link aqui) tem um valor simbólico incalculável, sustentando o criativo macroeconomista e grande especialista da história económica do século XX que a intervenção de Peng Dehuai terá sido estimulada por personagens como Liu Shaoqi, Deng Xiaoping e talvez Zaho Enlai que não ousaram enfrentar de forma tão direta e corajosa Mao Zedong. Estávamos no auge das políticas do Grande Passo à Frente que segundo a maior parte dos historiadores colocaram a China na trajetória da fome, estimando-se em cerca de 50 a 100 milhões de pessoas que entraram nessa espiral de não sobrevivência.

A cedência tática de Mao Zedong na frente económica seria ilusória, devendo antes ser considerada como um recuo tático para os implacáveis períodos do Movimento para a Educação Socialista e da Revolução Cultural que haveriam de protagonizar processos de uma enorme violência de massas e um número infindo de purgas que instauraram o culto da personalidade de Mao.

O discurso de Peng Dehuai é um momento de cautela e de equilíbrio, insistindo sobretudo nos desequilíbrios que começavam a ser visíveis na economia chinesa, com as contradições associadas entre camponeses e operários e entre os diferentes estratos da população urbana, e na destruição de recursos de investimento que estavam a ser observado sem que as autoridades planificadores retirarem os devidos ensinamentos.

De nada valeu a Dehuai esse equilíbrio e prudência. A purga política foi uma realidade, a prisão também e a tortura pelos Guardas Vermelhos na Revolução Cultural com a complacência de Mao, acusado de traição capitalista, o que levou à sua morte em 1974 por doença não tratada na prisão, sendo-lhe inclusivamente negado o último desejo de ver através da janela o sol e as árvores.

Esta trágica deriva em torno do culto da personalidade de Mao Zedong adquire um outro significado se compreendermos a relevância da figura de Peng Dehuai.

Aproveitando a folga do nevoeiro e da chuva que fizeram desaparecer Santa Tecla, pesquisei alguns elementos para me situar em tão complexa questão. O conforto da base de dados bibliográfica da JSTOR a que acedo via Faculdade de Economia do Porto é um verdadeiro espanto e encontrei no Australian Journal of Chinese Affairs de julho de 1986 (link aqui) uma preciosa recensão de duas obras sobre o grande Marechal Peng Dehuai, pois é de uma personagem militar de grande envergadura na história da China de que se trata.

O tom dominante das referências conhecidas sobre as duas personagens, Peng e Mao, aponta para uma relação próxima, cooperativa e de respeito mútuo, desde as campanhas bélicas contra o Japão à Guerra da Coreia passando pelos acontecimentos da Longa Marcha. Vários exemplos de tensões são registados na bibliografia disponível, mas nenhuma delas deram origem a roturas ou confrontos irreversíveis. Afinal, Peng tinha um prestígio militar inatacável, assumia funções de proteção dos altos personagens do Partido incluindo o próprio Mao. Por isso, se algum confronto insanável tivesse acontecido seria incompreensível que Peng mantivesse funções até à reunião de Lushan.

Tudo indica que tenham sido os resultados de investigações sobre o estado do Grande passo à Frente nas áreas rurais que determinaram as preocupações de Peng. São conhecidos registos de que Peng não quereria estar presente nessa reunião e que é sobretudo a redação da carta que acabou por circular entre as secções do Partido que determinou a cólera de Mao. Face ao que foi anteriormente mencionado, a tese dominante é a de que Peng desejaria apenas tentar levar Mao a alterar a estratégia dos equilíbrios do Grande Passo à Frente e não a urdir na reunião de Lushan um ataque frontal à liderança de Mao. A reação deste último ao discurso de Peng foi segundo os registos de uma profunda violência, selando a sorte do Marechal que, em 1962, tentou, já depois da autocrítica no rescaldo imediato dos acontecimentos, através de uma nova carta demover o Grande Líder e mitigar a sua posição. E ao contrário do que sucedeu em relação a outras personalidades desconsideradas pelos Guardas Vermelhos, em que Mao intercedeu em favor da sua posição, relativamente a Peng nem uma palha foi movida para mitigar o radicalismo.

Tudo indica que o culto da personalidade estava instalado.

Não foi esse o destino de Deng Xiaoping apesar das suas vicissitudes com Mao. Estava-lhe destinado um papel central no período pós-Mao e pós-Revolução Cultural.

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