(As manifestações de rua contra as agruras do regime castrista sem os Castros que se alargaram por diferentes cidades de Cuba marcam um ponto de aceleração da incomodidade de larga parte da população cubana pelo estado das coisas a que o bloqueio americano à ilha, a pandemia e as incapacidades do castrismo conduziram. Nunca saberemos se o bloqueio americano fosse anulado o regime teria ou não capacidade para ir liberalizando o regime e conduzindo-o até a um processo de eleições verdadeiramente livres. Sem esse contrafactual assistiremos nos próximos dias à requentada disputa entre quem verá nestas manifestações a genuinidade da revolta popular dos descontentes e os que lhe atribuirão as mais sofisticadas provas de manipulação de massas a partir do exterior. Em meu entender, a questão está bem para lá dessa estafada oposição de perspetivas. É uma Cuba exaurida que emerge e há razões bem objetivas para o explicar ...)
Nas condições de economia global hoje prevalecentes, em que segundo o mais recente contributo de Branko Milanovic (Capitalism Alone) o capitalismo reina a seu belo prazer, com inúmeras variantes a servir a sua afirmação, a existência de Cuba e do regime castrista pode considerar-se uma verdadeira proeza ou milagre, consoante as perspetivas. Manter durante tantos anos, embora com regime férreo, a chama da revolução cubana e aguentar sucessivas transições de liderança, de Fidel para Raúl e deste para Canales, a liderança atual, é quase do foro do impossível. Dirão alguns que isso é fruto da repressão que o regime castrista exerceu sobre dissidentes potencialmente disseminadores de alternativas ao regime. A repressão existe e já não é propriamente a lógica da Revolução a poder contemporizá-la. Não nego que ela não tenha o seu papel na sobrevivência anómala do regime, mas sempre me habituei a distinguir entre a repressão conduzida segundo uma lógica de revolução e outras repressões que não mais do que a perpetuação no poder de um conjunto de protagonistas que da revolução estão já irremediavelmente afastados. Cuba e Nicarágua, por exemplo, são processos diferentes e mesmo entre Cuba e a Venezuela de Maduro há diferenças abissais.
Mas há fatores explicativos que vão para além da influência repressiva.
A nível económico, a indústria do turismo cubano exerceu um papel crucial na animação económica, não só proporcionando acesso a moeda estrangeira, mas sobretudo viabilizando a uma parte da população (cujo peso não sei quantificar) complementos importantes do rendimento oficialmente gerado na produção nacionalizada. A partir do momento em que o turismo começou a revelar níveis superiores de organização, este dado estrutural da economia cubana revelou-se incontornável para compreender a mitigação do desencanto para com a frustração de expectativas.
A nível social, o regime conseguiu alguns bons resultados em matéria de sistema de saúde, na sua dimensão básica da mortalidade infantil e em matéria educativa também foram conseguidos resultados inclusivos.
Com a permanência do bloqueio americano (e seria importante discutir as suas razões ao longo de diferentes administrações) que parece estar associado a um sentimento de perda irreparável que os EUA sentiram quando Fidel e a Revolução cubana romperam com a permanência americana na ilha), a pandemia vem dissipar o papel mitigador dos dois fatores anteriormente identificados. Por um lado, reduzindo o turismo a cinzas que demoram em reativar-se em chama, a pandemia quebrou a mitigação da insuficiência de rendimento e colocou de novo uma grande parte da população perante a perceção da miséria. Por outro lado, a dimensão pandémica veio também dissipar a perceção dos cubanos quanto às suas condições de saúde básicas. Pelo que tenho lido, o projeto da vacina própria tem sido um verdadeiro flop, colocando os cubanos perante uma fragilidade sanitária que não tem comparação nos últimos anos do regime.
A conjugação destas duas vulnerabilidades coloca o descontentamento e a insatisfação num grau de combustão facilmente inflamável a partir da Flórida cubana ou mesmo a partir de dentro e não colocaria as minhas mãos no fogo reiterando que se trata de manifestações genuínas e espontâneas de quem não pressente futuro e tem o presente devastado. É uma Cuba exaurida que se manifesta e não vejo margem de manobra para o regime libertar uma contraofensiva com base em fulgor revolucionário. O que é que Canales pode oferecer a essa contraofensiva? Seguir a patética invocação da memória de Chavez a que Maduro oportunamente recorreu? Será que é ético recusar a Cuba as vacinas necessárias para controlar o surto pandémico? A Rússia e a China já não se interessam pelo futuro da ilha? Assistiremos a um conflito entre descontentes e resignados do regime que levará a repressão a níveis insuportáveis?
Nota final:
Alegro-me por ter encontrado no New York Times internacional (link aqui) um importante artigo de opinião no sentido da interpretação da seleção inglesa como um exemplo de inclusão e diversidade, características bem mais importantes do que a derrota sofrida perante um adversário de respeito. O artigo de opinião é de Musa Okwonga e vale a pena ler.
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