(A possível transição de um regime autocrático e de legitimação em base religiosa como o do Irão para uma sociedade mais democrática e laica é dos processos mais complexos que podem ser concebidos. Essa margem estreitíssima de mudança exigiria do Ocidente um outro posicionamento, diria mais inteligente, e sobretudo o desanuviamento político do médio-oriente, de modo a confrontar o regime teocrático com as suas próprias insuficiências. Tudo isso parece miragem, até porque o próprio regime iraniano parece passar por uma fase de paranoia. Enquanto isso, a base urbana e social para essa transição penará por melhores tempos e tem ela própria que se reinventar em contexto tão constrangedor.)
Até há bem pouco tempo, o regime iraniano evidenciava dificuldades derivadas da situação económica desastrosa em que se encontrava, mas os sinais de paranoia interna não eram aparentemente visíveis. O episódio de 16 de janeiro de 2020, em que tudo indica por erro trágico um avião de passageiros ucraniano foi abatido, provocando a morte de 176 pessoas, foi talvez mais um sinal de incompetência interna de forças de controlo do que propriamente uma evidência de paranoia (link aqui). Embora com algum atraso e despertando por isso alguma reação popular, o regime reconheceu o erro e procedeu disciplinarmente quase quatro meses depois contra 10 oficiais pelo incidente. Recorde-se que este incidente ocorreu praticamente em coincidência com a retaliação iraniana, dirigida a bases americanas no Iraque, pela morte do comandante dos Guardas da Revolução infligida pelos EUA.
Retirando esse incidente com profundas repercussões na imagem exterior do regime, o que há a registar é a já conhecida política do esticar da corda em matéria de extravasar o acordo nuclear que Trump dinamitou. As eleições iranianas são uma contínua tentativa da vertente teocrática do regime conservar o seu poder e se por vezes há esperança em alguns dos candidatos rapidamente essa esperança se desvanece dada a força militar que suporta essa vertente teocrática.
Tentar sequestrar ou liquidar alguma ativista nativa do Irão mas já com a nacionalidade americana a partir de operações direta ou indiretamente conduzidas em território americano isso já é outra conversa e, aí sem dúvida, podem antecipar-se comportamentos de regime paranoico.
O caso veio levemente noticiado nos jornais portugueses, mas foi necessário recorrer a informação do bom jornalismo que ainda campeia pela imprensa americana para compreender melhor o que foi denunciado pelas forças de segurança americanas, neste caso o FBI. É esse o caso do curto mas informativo artigo da jornalista Robin Wright na New Yorker (link aqui).
A jornalista e ativista de origem iraniana, Masih Alinejad, exilou-se nos EUA em 2009, tendo continuado a experimentar a perseguição do regime, numa tentativa de contra-informação dirigida ao ativismo promovido por Alinejad a partir dos EUA, com larguíssima audiência nas redes sociais e um programa na Voz da América em língua iraniana. A história tem contornos de perseguição à família da jornalista que permaneceu no Irão, incluindo a prisão do irmão, que deu origem a sistemáticas denúncias por parte da Amnistia Internacional.
Foram agora publicadas evidências de atividades de investigação privada, alegadamente contratadas pelos serviços secretos iranianos, dirigidas à jornalista e à sua família, com o objetivo de preparação de rapto e fuga dos EUA e obviamente conseguir o seu retorno forçado ao Irão.
Como seria de esperar, o Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano rejeitou a acusação falando de uma cena hollywoodesca, mas a jornalista da New Yorker reuniu evidência de que outros alvos de ativistas iranianos estarão a ser objeto de iniciativas similares. É conhecido o caso do ativista em Paris Ruhollah Zam, atraído ao Iraque e posteriormente capturado e enforcado no Irão.
A ideia de que é possível ao regime teocrático contrariar a ação de ativistas iranianos em países estrangeiros como os EUA com operações de terreno desenvolvidas nesses países dirigidas por comandos próprios ou qualquer mercenário mais solícito aponta já para algum sentimento de impotência delirante senão de paranoia. O que pode significar o mau estado de forças em que o regime provavelmente se encontra.
De qualquer modo, o que este acontecimento revela é a persistente sensação de perda atávica de uma grande percentagem de população iraniana que se prevê privada de tirar partido do potencial milenário de uma civilização que poderia fazer a sua transição para a modernidade e disso se vê privada por um regime teocrático e incapaz de assegurar a sua própria sustentação a não ser pela repressão. Claro que em desespero o regime poderá condicionar ou mesmo eliminar o acesso à internet. Mas tal medida reforçará o isolamento.
Moral da história, as famigeradas redes sociais, tão amigas do populismo mais desbragado, parecem também incomodar e de que maneira os regimes autocráticos, teocráticos ou não. O que não deixa de ser uma ironia dos tempos de hoje.
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