segunda-feira, 19 de julho de 2021

A CHINA CONCRETA

 

(Thomas Piketty tem um artigo curioso no seu blogue regular no jornal Le Monde, que nos ajuda a perceber a chamada China concreta, ,relativamente à qual o mundo ocidental tem demonstrado uma grande instabilidade, e também diversidade, de entendimentos. Parece existir do lado ocidental alguma ambivalência de posições. Se no plano político e do respeito pelas liberdades individuais nunca como hoje o regime chinês foi tão criticado, já no plano económico, Portugal incluído, a reação é bastante mais matizada.

Tal como Piketty devidamente o assinala (link aqui), o regime chinês enfrenta hoje uma forte oposição no exterior e as razões são claríssimas, só espantando como se essa reação se manifestou com tanto atraso. A omnipresente influência do Partido Comunista Chinês, com cerca de 90 milhões de membros o que perfaz cerca de 10% da população, vem associada a uma imagem de autoritarismo e de repressão. Não se trata de uma imagem contemporizadora ou apaziguadora de tensões, antes pelo contrário. O modo como qualquer dissidência é varrida e o exemplo da violenta rejeição às esperanças de democracia em Hong-Kong, não contemporizadora com a emergência dos ideais da democracia liberal aí emergente, ilustram que a China não está particularmente interessada em agradar aos países ocidentais em que a democracia liberal se desenvolve. No plano interno, a situação está longe de poder ser considerada uma passadeira vermelha para o regime, já que a desigualdade, o declínio demográfico e o envelhecimento e os rumos da distribuição da riqueza (apesar do colosso demográfico os sinais exteriores dessa distribuição de riqueza não mais podem ser ocultados) são realidades hoje já suficientemente tangíveis para ser ignorados, apesar do compromisso de lealdade assumido pelos 90 milhões de “partisans”.

Já no plano económico, é preciso cavar mais fundo e com mais critério para se compreender melhor a China concreta que se move.

O gráfico proposto por Piketty reúne informação preciosa para se compreender melhor os rumos da economia chinesa do ponto de vista da realidade do comando que impera sobre as empresas chinesas.

Em cerca de 22 anos, o panorama da propriedade do capital empresarial alterou-se com algum significado. A dimensão do capitalismo de Estado continua a estar presente, apesar da queda sensível da propriedade pública, hoje estabilizada em pouco mais de 50% do capital. A esse movimento sucedeu um outro, de sinal oposto, com o lento mas sustentado crescimento da propriedade privada no capital das empresas, hoje também estabilizado em pouco mais do que 30%. Por sua vez, a presença de capital estrangeiro, senão residual, está hoje estagnada em torno dos 10%, o que equivale a dizer que a oportunidade identificada por alguns de associação no local ao capital chinês não parece ter dado frutos e ter antes sido limitado.

Apesar desta mudança estrutural (será importante adicionar a esta informação a saída de capital chinês para investimento direto estrangeiro ou participação de capital em empresas já constituídas), é nítido que o modelo chinês continua a deter um nível de capital público incomparavelmente mais robusto do que a situação líquida do capital público a ocidente que ou é nulo ou negativo.

Piketty está particularmente interessado nas consequências de um património líquido ocidental negativo, com os titulares dos títulos da dívida pública desses países a deterem o equivalente dos ativos públicos existentes (principalmente infraestruturas sociais coletivas) e uma parte dos impostos que serão cobrados no futuro. Piketty tem razão quando associa ao desastrado processo de redução do peso público o reforço do modelo chinês.

O que se passou em Portugal é ainda de mais ampla perplexidade. Quando na ânsia de se colocar os credores europeus ao abrigo de qualquer “default”, as privatizações em Portugal foram aceleradas mesmo antes de existir um quadro de orientação estratégica, na altura, aparentemente, nenhum dos poderes ocidentais mais representativos parece ter ficado incomodado com a emergência da China como proprietário de capital em Portugal. Para os alemães o que contava fundamentalmente era por a salvo os seus bancos comerciais que haviam financiado forte e feio a economia portuguesa. E para os outros a perspetiva sobre a progressão económica da China era vista mais como oportunidade do que ameaça.

Estou por isso curioso quanto ao modo como a particularidade portuguesa será tratada na cena internacional e sobretudo na cena europeia, agora que o ocidente acordou não só politicamente mas também em termos económicos para uma nova maneira de olhar a China.

E quando se fala de estratégia em Portugal, estamos de novo naqueles períodos em que o clamor sobre a necessidade de estratégia, é praticamente transversal, já agora conviria não esquecer que qualquer estratégia não existe sem uma dimensão de transição e de transformação a partir do que existe. Por isso, não será pedir muito que nos preocupemos com o que fazer do papel que o capitalismo de Estado chinês assume em algumas utilities portuguesas nacionais. É incómodo e dará seguramente dores de cabeça ao ministro dos Negócios Estrangeiros, seja ela um Augusto Santos Silva ainda não regressado á sociologia e à ciência política ou outro substituto qualquer. Mas lá que é profundamente estratégico disso não tenho dúvidas.


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