(Regresso a um post de Branko Milanovic de fins do passado ano, link aqui, pois parece-me que à medida que o tempo pandémico se vai prolongando para frustração das nossas expectativas mais a ideia do economista sérvio me parece totalmente ajustada. Nunca fui muito sensível à ideia do choque de civilizações, mas quando uns mais do que outros são incapazes de aprender com o melhor do outro, algo vai mal e não é no Reino da Dinamarca ....)
Conforme já aqui oportunamente referi, o post de Milanovic parte do desvio existente entre os indicadores que existiam sobre o potencial de resposta dos países a uma pandemia, mais propriamente o Global Epidemic Preparedness Report (Global Health Security Report) elaborado pela John Hopkins University e o Economic Intelligence Unit, datado de outubro de 2019, e o desempenho efetivo dos países na resposta pandémica. Essa é a evidência empírica de base a todo o seu raciocínio, a qual põe a nu alguma incapacidade de resposta a nível pandémico de alguns dos países que pressupostamente estariam melhor preparados para o fazer.
O tema da impaciência é mobilizado a partir de escritos de Kafka, mais propriamente dos Aforismos e recorro à sempre revisitável edição da Assírio e Alvim: “Há dois vícios humanos essenciais, dos quais todos os outros derivam: a impaciência e o desmazelo. A impaciência fez com que fossem expulsos do Paraíso; o desmazelo impede-os de lá voltarem. Ou talvez haja apenas um vício essencial: a impaciência. A impaciência fez com que fossem expulsos e a impaciência impede-os de lá voltarem”.
Acho que Milanovic está cheio de razão quando ele reanalisa o que foi a resposta da grande maioria dos países ocidentais à pandemia e à tensa questão de confinar ou não confinar e confinando quanto tempo é necessário para o fazer com eficácia. Tudo se passa como se a civilização urbana ocidental nos tivesse conduzido a um frenesim incontido, não necessariamente na variante António Variações (“Tenho pressa de sair, Quero sentir ao chegar, Vontade de Partir, P'ra outro lugar”), mas um frenesim que nos acelera transversalmente o tempo e a nossa vivência do mesmo. Alguns dirão que se trata de uma deriva do paradigma da produtividade, mas na minha interpretação estamos mais no reino da efemeridade como forma central de usufruição e gozo da vida.
Esperar-se-ia que genericamente obrigados a longos processos de confinamento tivéssemos aproveitado esse tempo para refletir mais maduramente sobre essa efemeridade e isso tivesse contribuído para um novo paradigma de gestão do tempo, primeiro ao nível da nossa esfera comportamental e depois nas organizações em função das mudanças dos indivíduos que lhes dão corpo e as animam. Mas não parece que tenha sido isso que aconteceu. A vivência impaciente da efemeridade parece ter regressado em força e isso obviamente teria que impactar fortemente a gestão das expectativas na pandemia em contextos democráticos.
Em sociedades fortemente desiguais como as ocidentais e com esse fenómeno claramente em crescendo, a impaciência do regresso à efemeridade desenvolve-se a partir dos níveis mais afluentes de consumo e de rendimento dessas comunidades, perdendo de vista que na base e no miolo dessas sociedades outros problemas existentes e esses são os da sobrevivência do dia a dia, uma trágica forma de efemeridade.
Os britânicos parecem apostados em levar essa impaciência ao extremo, antecipando radicalmente o fim de medidas restritivas, esperando que o avanço da vacinação e a própria imunidade ditada pela evolução do número de infetados. Se essa opção viesse de uma outra forma de governação e algum pensamento científico de suporte poderíamos interpretá-la não como uma variante extrema da impaciência, mas como uma abordagem alternativa. Ora não é esse o caso e todo o governo conservador parece hoje dominado por mágicos de feira, cada um com as suas habilidades mais bizarras, rebeldes de quatro costados só na aparência e uma incrível falta de solidez e robustez de argumentos.
Já percebemos que a abordagem britânica, e quem viu ontem Wembley naquela vitória que os deuses do Norte deveriam ter evitado, indo buscar forças sei lá onde percebe que grande parte da população britânica gostará dessa roleta, enfrentará uma indeterminação radical: como evoluirá o próprio vírus nesse novo contexto e que tipo de variantes adaptativas irá gerar, num jogo estranho de gato e rato com as vacinas.
Curiosamente, do outro lado do mundo, os Australianos nascidos do exílio e desterro de britânicos pouco recomendáveis, mas não só os Australianos, à mínima possibilidade de disseminação de novos surtos não hesitam e parecem borrifar-se na impaciência.
(https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/data-covid-19-vaccination-eu-eea)
Cá pelo burgo, o esforço de vacinação é notável, obviamente com todos os problemas inerentes a um esforço de massa, mas o que contam são os números (veja-se o gráfico acima). A frente comunicacional oscila como varas verdes em dia de temporal, quando o fundamental é focar a comunicação nos comportamentos seguros após a vacinação e obviamente vacinar, vacinar, vacinar, mesmo que o Vice-Almirante tenha aqui e ali de dar uns murros na mesa.
Até porque se o esforço de vacinação é crucial, não o é menos gerar comportamentos seguros que nos ajudem a lidar com esse novo contexto. Os dados conhecidos e publicados pelo IHME - Institute for Health Metrics and Evaluation (link aqui) sobre a eficácia das vacinas à prevenção da doença e da infeção são tudo menos convidativos à impaciência.
E, se repararem, os AstraZenecados como eu têm de olhar para os números com frieza. Por isso, é que não entendo a impaciência dos britânicos.
Kafka a ter razão? Kafkiano, não?
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