(Este vosso Amigo sofre decididamente com o calor, mesmo a Norte e pelas margens do Minho e do Coura. Por isso, sempre a vociferar com a Nortada que é nossa e com os nevoeiros ou mesmo chuva a verdade é que tais estados do tempo são uma benesse para um derrotado do calor. Por isso, na canícula destes últimos dias de férias, com uma breve ida ao Porto para uma reunião de debate fechado com a candidatura de Rui Moreira, a leitura e uns mergulhos na piscina e sombra, muita sombra, são o lenitivo para mais uns dias de trabalho a pensar já em Agosto...)
Das leituras diversas que tem sido possível colocar em dia há uma que me encantou na justa proporção do interesse que tenho pela personalidade e pelo escritor que constitui o seu foco. Estou a referir-me a brilhante biografia de José Cardoso Pires, assinada por Bruno Viera Amaral.
Acho que aprendi mais nestes dias de história contemporânea portuguesa com a obra de Bruno Vieira de Amaral do que em muitos ensaios especializados, tamanha é a densidade de informação que a história dos rebeldes de um regime pobrezinho e curto de vistas que nos manietou durante largos anos. Com a ajuda da biografia de JCP reconstituímos um tempo precioso da construção da nossa cultura. E dá vontade de rebentar com uma valente gargalhada dando conta dos esforços de uma direita desesperada que tem feito os possíveis e os impossíveis para adocicar a nossa visão do regime, nele encontrando virtualidades ao serviço de uma normalização em curso para abrir caminho a um saudosismo balofo e que não resiste à mínima evidência histórica.
A personalidade e vida de JCP são o que um biógrafo diligente gosta de encontrar e a vida e obra do saudoso autor de A Cartilha de Marialva são uma peça desconcertante de nuances e contradições, mas sobretudo de uma autenticidade ímpar seja nas cabeçadas de rufião à Cais do Sodré, seja na procura do rigor e no modo como analisava as recensões críticas à sua obra.
O universo de personalidades, poetas, escritores e políticos em que JCP se integrava é um verdadeiro cosmos da cultura portuguesa. O rol é imenso e cada um desempenha um papel decisivo seja de zangas ou desencontros, seja de amizade e cumplicidade profundas. Luís Pacheco, Salazar Sampaio, Alves Redol, José Gomes Ferreira, Carlos Oliveira, Maria Lamas (uma espécie de confidente de JCP à distância), Mário Dionísio, Alexandre O’ Neill, Óscar Lopes, Castro Soromenho, Ferreira de Castro, Cesariny, Luís Sttau Monteiro, Alçada Batista, diferentes gerações que se foram cruzando, combatendo por vezes, cooperando em projetos comuns que iam fazendo o que podiam para vencer a modorra do nosso panorama editorial e a censura.
A biografia fornece-nos um contexto exemplar para a emergência do neo-realismo em Portugal, as diferentes tendências que nele se confrontaram, a rejeição contra a sua normalização em que JCP se integrou, as primeiras notas do surrealismo português com os sítios datados em que emergiu. Um dos momentos que mais me impressionou foi a frontalidade pessoal com que JCP confrontou Alves Redol sobre as derivas a que o neo-realismo se estava a expor (descrever a vida de quem trabalha e é explorado a partir de um comboio que passa), confessando o próprio JCP que Alves Redol é autor de algumas páginas que mais o emocionaram.
Na parte que já li da biografia, sensivelmente até à publicação da Cartilha do Marialva, injustamente na época submetida a uma edição de luxo com uma tiragem reduzida, em que JCP desenvolve o confronto inesquecível entre o marialva e o libertino, foi para mim retribuidor compreender a poderosa influência exercida na obra de JCP da literatura americana e também o seu progressivo foco no mundo que ele conhecia e compreendia melhor do que ninguém, o mundo urbano da pequena burguesia e do sobretudo dos desintegrados da vida, os rufiões, as prostitutas, os pequenos negócios fraudulentos, a boémia. Nas relativamente reduzidas permanências no estrangeiro de JCP, seja por questões profissionais de edição literária, seja por motivos de fuga prudente ao assanhamento da PIDE, percebe-se pelo contraponto do atavismo e pequenez da sociedade lisboeta com o cosmopolitismo de Paris, Londres, Rio de Janeiro ou São Paulo quão limitado era nesse tempo o país e como é um verdadeiro milagre terem surgido obras tão poderosas na literatura e na poesia portuguesas.
O mapeamento das leitarias, cafés, tabernas e outros locais de encontro é precioso, sobretudo acompanhada da breve descrição dos ambientes e presenças que os animavam.
E sempre no coração de tudo a eterna contradição do militante do PCP, que fez os possíveis e impossíveis no que hoje designaríamos de precariedade para encontrar um mínimo de rendimento para poder escrever com estabilidade e paz de espírito, e que tinha ainda de satisfazer as suas tarefas de militante como outro qualquer. Ligação que terá estado na base da relativa injustiça com que tratou um dos analistas e apreciadores mais clarividentes da sua obra, Mário Dionísio, a propósito de uma disputa entre este último e as estruturas do PCP, cuja posição JCP seguiu.
Estou na altura em que JCP conhece e se aproxima de um outro personagem ímpar da vivência lisboeta de então, o cineasta Fernando Lopes, e estou ansioso por conhecer mais evidência de um tempo mais recente que nos levará a obras como Alexandra Alpha e a Balada da Praia dos Cães.
Encontrei no livro de BVA a frescura pertinente para estes dias de canícula e a releitura de algumas das obras de JCP está no horizonte imediato. Vou começar pela Cartilha do Marialva.
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