quinta-feira, 1 de julho de 2021

MUTAÇÕES URBANAS

 

(Devo reafirmar que não sou um saudosista urbano, chocado pelo desaparecimento de referenciais nas Cidades com que nos identificamos, seja como residentes regulares, seja como visitantes acidentais e despertos para as experiências afetivas e sensoriais que o espaço urbano nos proporciona. Mas sou um observador atento das mutações urbanas que permanentemente acontecem, sem enveredar pela tentação de encarar as Cidades como seres biológicos que mudam em função de dinâmicas endógenas e de choques com o exterior e grandes tendências que se repercutem no espaço. E se destas considerações emergir alguma ponta de nostalgia, atribuam-na à memória gustativa e não a qualquer ponta de saudosismo.)

Santiago de Compostela é talvez a Cidade que está mais ligada às minhas experiências de trabalho fora do País. Bruxelas em determinada época desempenhou essa função, mas as minhas experiências de trabalho na capital das instituições europeias feneceram rapidamente à medida que o trabalho europeu na Quaternaire foi descendo aos níveis comparáveis com a dimensão do País e com a nossa incapacidade de presença permanente junto dessas instituições.

Os trabalhos da cooperação interregional e transfronteiriça Galiza-Norte de Portugal, em que fui pioneiro, e também alguns estudos no âmbito do Eixo Atlântico (associação de Cidades do Noroeste Peninsular) a quem também estive pioneiramente ligado, levaram-me vezes sem conta a Santiago de Compostela. Nessa Cidade, para além do interesse de compreender duas realidades institucionais que a Galiza ofereceu à minha reflexão de agente do planeamento, a constituição do Consórcio Município de Santiago de Compostela, Xunta de Galicia e Estado Espanhol para a promoção inicial do Jacobeo e o modelo de revitalização de Centro Histórico que foi aí ensaiado (com longas conversas com o colega Anxel Viña da Oficina de Planeamiento, onde andas tu Caro Amigo?), a cooperação foi responsável pelo conhecimento que fui tendo sobre a Cidade. As minhas referências consolidavam-se em função das companhias. Com os colegas de trabalho, as referências eram sobretudo o velho Café Bar Derby (hoje encerrado) para o café da manhã e inúmeros restaurantes de tapas no Casco Histórico. Mas para os encontros mais institucionais (e nos tempos da Xunta com Fraga Iribarne e da CCDR Norte com Luís Braga da Cruz, dados os conhecimentos familiares existentes entre as duas personalidades a intensa proximidade era maior) as coisas piavam mais fino e talvez em duas ou três iniciativas tive oportunidade de conhecer um dos então monumentos da gastronomia galega, o Vilas, na não menos mítica Calle Rosalia de Castro. Eram longos almoços ou jantares, que se prolongavam para além do que um europeu do Norte poderia compreender e, de facto, o Vilas deixava recordações inesquecíveis no palato, embora sempre com a conhecida dificuldade de trabalhar depois do almoço e de dormir com jantares tão prolongados.

Os meus amigos galegos aproveitavam para registar as diferentes impressões históricas que o Vilas suscitava, alguns mais críticos porque o associavam a Fraga Iribarne (foi no Vilas que a chamada paz histórica entre Fraga e Xosé Manuel Beiras foi assumida), outros mais interessados nas delícias da gastronomia tradicional galega e que se esforçavam por atirar para trás das costas a proximidade de Fraga ao restaurante, reservando para outros restaurantes as suas memórias políticas.

Desde 2012, em que encerrou de vez, o edifício que acolhia aquele templo gastronómico estava expectante. Entretanto, a Voz de Galicia anuncia (link aqui) a nova função que vai ser assumida por aquele mítico espaço. Trata-se de um projeto de COLIVING e de COWORKING. Ou seja, uma modalidade inovadora de habitação e serviços, onde vão coexistir habitações individuais, duplas e suites e espaços de coworking. E é a mutação urbana a funcionar. Numa rua que tem a carga histórica e cultural de Rosalia Castro a pairar nas suas atmosferas, um tempo gastronómico fez a sua vida e cede espaço à inovação na oferta de habitação e serviços.

Não é isto uma bela metáfora da mutação permanente que as Cidades nos asseguram?

Quanto à memória gustativa e às delícias entranhadas do palato outras lhe sucederão porque também a inovação gastronómica não para e o tradicional reiventa-se. Mas que o Vilas tinha a sua pinta, isso talvez não o esqueça mais.

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