Li por estes dias dois livros daqueles que nos ajudam a abrir a cabeça, no caso em relação ao racional (um qualificativo naturalmente hiperbólico, é bom de ver) que subjaz à lógica expansionista russa e largamente explica a sua recente deriva com a invasão da Ucrânia. Ambos os textos são fascinantes pela descoberta que proporcionam, revelando-se aliás largamente complementares, o primeiro relativamente mais denso e abrangente é assinado pelo historiador de Yale (Timothy Sneider) que acompanhou o excelente Tony Judt na sua doença degenerativa e com ele escreveu “Pensar o Século XX” e o segundo mais escrito ao jeito de ensaio é assinado pelo editor-chefe da revista “Philosophies” e especialista em história do pensamento russo Michel Eltchaninoff. Não cabe aqui explorar em detalhe o conteúdo das 367 mais 155 páginas que compõem as referidas duas obras. Mas sempre quero deixar alguns breves apontamentos especialmente sensibilizadores do interesse e qualidade das análises em presença.
Do livro de Sneider, escolho a sua criativa proposta de leitura da história do nosso tempo, traduzida, por um lado, numa política da inevitabilidade (“a ideia de que o futuro é apenas mais do presente, de que as leis do progresso são conhecidas, de que não há alternativas e de que por isso não há realmente nada que possa ser feito”, ou seja, “na versão capitalista americana desta história, a natureza criou o mercado, que criou a democracia, que criou a felicidade” e “na versão europeia, a história criou a nação, que aprendeu com a guerra que a paz era boa, e por isso escolheu a integração e a prosperidade”) e, por outro lado, numa política da eternidade (“enquanto a inevitabilidade promete um futuro melhor para todos, a eternidade coloca uma nação no centro de uma história cíclica de vitimização”, pelo que “o tempo já não é uma linha para o futuro, mas um círculo onde se regressa interessantemente às mesmas ameaças do passado”). E é assim que uma obra que se desenvolve em torno de seis dicotomias (individualismo ou totalitarismo, sucessão ou fracasso, integração ou império, inovação ou eternidade, verdade ou mentiras, igualdade ou oligarquia) nos explica que “aquilo que já aconteceu na Rússia é o que pode vir a acontecer na América e na Europa: a estabilização da desigualdade maciça, a anulação da política pela propaganda, a mudança da política da inevitabilidade para a política da eternidade”.
Mas o que mais importará acentuar será o facto de tudo quanto hoje nos abala nas afirmações e nos atos de Putin e dos seus acólitos surgir por ali devidamente equacionado e contextualizado. Por exemplo: “A Rússia foi o primeiro país a recorrer à política da eternidade, e os líderes russos protegeram-se a si mesmos e à sua riqueza exportando essa política. O oligarca-chefe, Vladimir Putin, escolheu o filósofo fascista Ivan Ilyin como guia.” E ainda mais: “Reanimado hoje em condições de desigualdade como política da eternidade, o fascismo serve aos oligarcas como catalisador de transições que se afastam da discussão pública e se aproximam da ficção política; longe da votação com sentido e próximas da democracia falsa; longe do Estado de direito e próximas dos regimes personalistas.” Com a Ucrânia a marcar presença bem visível no ideário que Putin explicitou em 2012: “Ao falar da Rússia como uma civilização, Putin referia-se a todos os que via como pertencentes a essa civilização. Em vez de falar do Estado ucraniano, cuja soberania, integridade territorial e fronteira eram oficialmente reconhecidas pela Rússia, Putin preferia imaginar os Ucranianos como um povo disperso na vasta extensão que ele definia como território russo, ‘dos Cárpatos até Kamchatka’, e, portanto, um elemento da civilização russa. Se os Ucranianos eram apenas mais um grupo russo (como ‘os Tártaros, os Judeus e os Bielorussos’), então o Estado ucraniano era irrelevante, e Putin, como líder russo, tinha o direito de falar pelo povo ucraniano.” Citando o artigo de Putin: “Vivemos juntos há séculos. Juntos, triunfámos na mais terrível das guerras. E continuaremos a viver juntos. E aos que querem dividir-nos, só posso dizer uma coisa: esse dia nunca virá.” E mais, e mais, e mais, com as políticas anti-gay da Rússia, a Eurásia, o “relativismo estratégico”, o objetivo de destruição da UE e dos EUA, a ciberguerra e a invasão russa da Ucrânia em 2014 (“guerra híbrida) em planos de destaque, tudo numa longa e aprofundada digressão que só pode ser recomendada para uma visita a merecer o devido foco.
Passando ao ensaio de Eltchaninoff, e como atrás já sublinhei, o facto é que ele encaixa como uma luva na investigação de Sneider. Da sua introdução: “Destaca-se cada vez mais claramente uma doutrina que já há vários anos, ainda que atabalhoadamente, se adivinhava. Tal como a personagem de Putin, inescrutável e imprevisível, trata-se de uma doutrina complexa. Porém, depois de também nós termos lido e relido os clássicos do pensamento russo, depois de termos questionado comentadores informados e atores da vida intelectual russa, depois de termos dissecado os discursos de Vladimir Putin desde a sua ascensão até à Presidência, há uma imagem que emerge. Essa doutrina organiza-se em vários níveis: com base numa herança soviética assumida e num falso liberalismo, o primeiro nível é o de uma visão conservadora; o segundo, uma teoria da ‘via russa’; o terceiro, um sonho imperial inspirado em pensadores eurasiáticos. Tudo sob o signo de uma filosofia com pretensões científicas.” Que termina do seguinte modo: “De caráter híbrido e mutante, essa doutrina promete-nos a todos um futuro turbulento”. Como já estamos a vivenciar no momento presente, sempre na expectativa de que o pior possa ser evitado.
Em brilhantes páginas, o autor fundamenta a sua explanação através do tratamento de questões tão centrais como aquelas que sintetizo nestas sete telegráficas notas: (i) “soviéticos acima de tudo” (citando Putin: “acima de tudo, deve reconhecer-se que a queda da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século”, uma queda que sublinha ter afetado vinte e cinco milhões de cidadãos soviéticos, de etnia russa, que se encontravam fora das fronteiras da nova Rússia), embora menos por crença na ideologia marxista-leninista do que por uma “lealdade sem mácula” a uma convicção patriótica, a um princípio de cultura militar e ao papel institucional da polícia política (com inclusão do projeto putiniano de União Eurasiática); (ii) uma falsa veste liberalizante (Kant, Pedro, o Grande, e a filosofia do judo), já que “não é mais do que uma mera faceta do modo como aborda os problemas, uma forma de tranquilizar os ocidentais enquanto espera que eles cometam os primeiros erros que lhe permitirão surpreende-los”; (iii) os amores filosóficos (com Ivan Ilyin como principal referência) e a viragem conservadora (incluindo “o deslizamento da defesa dos valores familiares tradicionais para a homofobia”, no quadro de “uma diatribe antimoderna e antiocidental”); (iv) a “via russa” explicitada por Putin no “discurso mais importante da sua vida” (18 de março de 2014) que o leva a um raciocínio luminoso (“como a Rússia se recusa a cumprir as ordens de um mundo unipolar e homogeneizador, como deseja salvaguardar o seu caminho específico, é então impedida de influenciar os seus vizinhos, é empurrada para um beco sem saída, é isolada, é marginalizada” e “deve daí em diante defender a sua vontade de seguir ‘uma via que lhe é própria’ e reivindicar o direito de ser ouvida e respeitada na sua diferença”); (v) o sonho eurasianista (a Eurásia, “um mundo geográfico à parte, cujo centro é a Rússia”), com o “guru” Aleksandr Dugin a escrever quase premonitoriamente que “[à Ucrânia ocidental], não poderá nunca encarnar um Estado” e “só lhe resta tornar-se uma zona folclórica da identidade ucraniana, mas sem qualquer independência política”; (vi) as formas que poderão estar em causa no “novo império”, afinal uma espécie de “imperialismo à la carte” (“invoca a nostalgia da URSS, dos princípios religiosos comuns, da Rússia, da língua russa, do projeto eurasianista consoante as circunstâncias...”) que nunca abdica também de uma componente de “apologia da guerra”; (vii) uma ideologia para a Europa e para o mundo, com duas partes distintas (a defesa e afirmação do “mundo russo” e a liderança do movimento conservador na Europa, devendo o sentido deste ser encarado como “contrário à homossexualidade, ao ateísmo, ao cosmopolitismo, à internet e qualquer expressão de criatividade equiparada à desordem”).
Concluo, portanto, com uma vivíssima recomendação das duas obras acima citadas, as quais ganham em ser lidas em termos mais ou menos simultâneos ou sequenciais. Porque, como digo, elas nos fornecem perceções e dados objetivos e factuais capazes de nos fazerem sair das vulgatas do bom e do mau para que vão sendo encaminhados os cidadãos deste “mundo imundo” de que o bem está praticamente ausente e de que o mal, para ser adequadamente denunciado e combatido, tem de ser mais bem conhecido e melhor compreendido.