quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O CHALET DA MEMÓRIA



A leitura do último livro publicado em português de Tony Judt é simultaneamente comovente e preciosa para compreender e contextualizar as restantes obras do autor já publicadas em Portugal: Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos (2010), O Século XX Esquecido (2008) e Pós-Guerra. História da Europa desde 1945 (2006), todos com a chancela das Edições 70. O Chalet da Memória é uma obra com um processo de criação ímpar e revelador de um exemplo de resistência invulgar a uma doença incurável. O livro foi produzido já em pleno desenvolvimento da esclerose lateral amiotrópica (doença de Lou Gehrig) que havia sido diagnosticada ao autor, entretanto já desaparecido. Tal como é descrito no capítulo inicial que dá o nome à obra, diferentes mecanismos, processos e meandros da memória são utilizados para produzir narrativas susceptíveis de ser transmitidas a quem o auxiliou na tarefa da edição do livro. Não é nessa perspectiva que me interessa explorar esta minha leitura recente. O que me interessa é que nas narrativas de Judt sobre as condições da sua infância e adolescência em Inglaterra e posterior residência nos Estados Unidos podemos encontrar memórias interpretativas fascinantes sobre as condições de vida do pós-guerra e sobre o contexto económico e social que acolheu os pilares constitutivos do Estado-Providência. Não é que as narrativas de Judt não sejam deliciosas como ilustrativas da Londres da época. Recomendo vivamente o pequeno capítulo sobre o autocarro da linha verde para uma memória vivida sobre o planeamento da Grande Londres e da sua contenção na chamada cintura verde. Mas são as memórias do Estado-Providência que hoje me interessam desenvolver.
Tony Judt defendeu a tese (exposta por exemplo no Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos) de que um dos grandes constrangimentos para uma defesa consistente no plano político das conquistas básicas do Estado Providência é a progressiva perda de memória e vivência do que foram as condições sociais que acolheram e impulsionaram essa dimensão do modelo social europeu. A emergência da norma de consumo mais identificada com o “consumismo” de hoje tendeu a penalizar paradoxalmente a base política e social para a sua sustentação.
Nas narrativas e memórias de Judt encontramos elementos preciosos para caracterizar a austeridade do pós-2ª guerra em termos comparativos com a situação imposta aos países atingidos pela crise das dívidas soberanas. A comparação não escapou ao juízo atento de Krugman (“Austerity then and now” - http://krugman.blogs.nytimes.com/, 14 de Novembro 2011), que destaca a diferença fundamental da discrepância entre as taxas de desemprego (pleno emprego, então e desemprego massivo e estrutural, hoje).
E nesta associação de ideias chego à memória do século XX que a obra do também desaparecido Jorge Semprún (Junho de 2011) representa. Semprún utiliza também fragmentos da sua própria memória para ir deixando um testemunho sobre as raízes sobre as quais a Europa foi construída. Num texto datado de 5 de Abril de 2010, publicado no El País, “Mi último viaje a Buchenwald”, uma relíquia na minha própria memória de leitor, Semprún escreve: “Aí, num antigo campo de concentração nazi convertido em prisão estalinista, é onde devemos celebrar a Europa democrátiica. Contra todas as amnésias”. As memórias e narrativas de Semprún cumprem um estatuto similar às de Toni Judt. São fundamentais para compreender as raízes da construção de uma Europa hoje ameaçada. E se começámos com uma referência de um livro (O Chalet da Memória) será também com um livro de Semprún que fecha a reflexão. Adieu vive clarté ou Adiós, luz de veranos é talvez a obra em que a espiral da memória é mais trabalhada, na qual a conhecida frase de Beaudelaire, “Tenho mais recordações do que se tivesse mil anos” percorre toda a evocação, aqui também da juventude e adolescência de Semprún. Vale a pena ler em francês e em espanhol, tamanha é a delicadeza dessas recordações. Em ambas as narrativas, estão memórias cruciais para compreender os tempos de hoje, pelo menos por contraponto.

1 comentário:

  1. https://www.facebook.com/pages/O-Chalet-da-Mem%C3%B3ria-de-Tony-Judt/229245747140182

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